Início » POBRE SÃO PAULO

POBRE SÃO PAULO

por Ornan Serapião
10 minutos para ler

Paula Leal/Revista Oeste

Barracas de moradores de rua na Peixoto Gomide, entorno de um dos principais cartões-postais paulistanos, a Avenida Paulista | Foto: Daniela Giorno/Revista Oeste

Sem qualquer reação dos governantes, moradores de rua invadem extensas áreas da cidade e escancaram o abandono da metrópole

No farol, na porta do supermercado, em frente à farmácia. Nas praças, nas calçadas, nos canteiros, embaixo de pontes e viadutos. Basta perambular por algumas regiões da cidade de São Paulo para deparar com a miséria e o abandono escancarado na maior metrópole do país. A pandemia de covid-19 agravou um dos grandes desafios da administração pública municipal: a população de rua. Barracas e tendas armadas a céu aberto, lixo empilhado, trapos e cobertores amontoados, carrinhos de mercado largados pelas vias. É um cenário de degradação que embrutece a paisagem urbana. O Poder Público finge não ver o problema. Mas ele existe. E não para de crescer. 

São Paulo tem cerca de 25 mil pessoas vivendo nas ruas, segundo dados do último censo, de 2019. A prefeitura prepara um novo levantamento oficial, mas entidades afirmam que a questão se agravou com a chegada do coronavírus. O Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo estima que o contingente pode ter dobrado nos últimos três anos, com mais de 50 mil pessoas vivendo sem casa. Os números pré-pandemia indicavam um perfil de público majoritariamente masculino (85%). Passados quase dois anos de medidas restritivas que atingiram em cheio a economia e os mais pobres, a coisa piorou e famílias inteiras foram parar na sarjeta. “A gente vê uma situação de abandono completo por parte da prefeitura e do Estado”, diz o vereador Delegado Palumbo (MDB-SP). “Esse é o resultado da filosofia do governo do Estado de São Paulo: ‘Fecha tudo e a economia a gente vê depois’. Proliferação de moradores de rua, desempregados e gente catando comida no lixo.”

Moradores ocupam as calçadas na Alameda Ministro Rocha Azevedo, próximo à Avenida Paulista | Foto: Márcio Komura/Revista Oeste

A incapacidade do Poder Público

A cada eleição, uma nova promessa vazia se esvai em ações que beiram o improviso e são pouco efetivas em solucionar o problema. Na gestão do ex-prefeito José Serra (PSDB), foram construídas rampas embaixo de viadutos na região da Avenida Paulista para evitar a instalação de barracas na parte central da cidade. As rampas “antimendigos”, como foram apelidadas, viraram alvo de críticas de entidades sociais e não duraram muito. O governo do petista Fernando Haddad criou a “lei do frio” e proibiu que fossem recolhidos os objetos de moradores sem-teto. 

“Na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad [entre 2013 e 2016], a cultura do acolhimento deu espaço para a cultura de aceitar que as pessoas ficassem nas ruas, com a ideia de que ‘eles têm direito de escolher onde morar’”, lamenta o empresário Filipe Sabará, ex-secretário municipal de Desenvolvimento Social da capital paulista. “Quando se faz isso, você deixa as pessoas numa zona de conforto. Elas não saem daquela situação porque nem acreditam que podem sair mais.” Na gestão do então prefeito, João Doria (PSDB), moradores de rua foram acordados com jatos de água pelas equipes municipais. O tucano criou o programa Cidade Limpa e chegou a posar para fotógrafos vestido de gari e vassoura nas mãos. A prefeitura realizou mutirões para limpar as regiões centrais da cidade e dispersar moradores de rua. Mas o gesto durou o tempo necessário para que o fotógrafo designado para cobrir a ação marqueteira registrasse a cena.

Para piorar, a morte precoce de Bruno Covas, que estava havia apenas cinco meses no cargo, alçou um desconhecido ao posto de prefeito da maior cidade do país. Boa parte dos paulistanos não sabe nem o nome de quem hoje manda e desmanda no quarto maior orçamento do país (cerca de R$ 70 bilhões de receita anual), atrás apenas dos orçamentos dos Estados de São Paulo, Rio e Minas Gerais. O então vice, Ricardo Nunes (MDB), herdou a cadeira do titular em maio deste ano´, com a promessa de atuar firme na área social. Em entrevista recente à revista Veja São Paulo, ao dizer o que fez na prática para enfrentar o problema, o ex-vereador afirmou que foram criados programas e destinadas 1.550 vagas em hotéis para a população em situação de rua. “O pessoal está andando com os projetos”, garantiu. Pelo visto, sem pressa e a passos bem lentos. Oeste pediu uma entrevista com Ricardo Nunes para tratar do assunto, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. 

Se o festival de políticas públicas sociais é um desastre, o trabalho de instituições privadas e filantrópicas cumpre um importante papel para suprir a nulidade do Estado. Um exemplo é o projeto de Horta Social Urbana, do Instituto ARCAH, que realiza o acolhimento de pessoas com a proposta de investir na autonomia do indivíduo (leia a reportagem Plantando o Futuro). São muitos os grupos voluntários dedicados a zerar a fila da fome e da miséria e que trabalham para dar comida, cobertores e suporte moral para essa população. No entanto, boa parte dos gestos de caridade acaba sustentando uma verdadeira indústria da miséria, principalmente nos bairros centrais, onde existe maior fluxo de pessoas — e de dinheiro. Entidades filantrópicas e igrejas garantem alimento e agasalho. 

“Se você vai lá e faz um trabalho assistencialista raso, fica satisfeito e depois vai deitar na sua cama, quentinho, e falar: ‘Eu sou uma pessoa boa, olha o que eu fiz’”, diz Filipe Sabará, fundador da ARCAH. “Corre o risco de você estar fazendo aquilo muito mais para você do que, de fato, para as pessoas que estão ali recebendo.” Na porta de farmácias e supermercados em São Paulo, tornou-se frequente encontrar gente pedindo ajuda para comprar produtos. O atendente de uma rede de farmácias na Avenida Sumaré disse à reportagem de Oeste que os pedintes recebem tanto que, para evitar o acúmulo de doações, um carro chega a passar duas vezes por dia para recolher fraldas e leite em pó comprados diariamente pelos clientes da drogaria.  

O apoio da elite culpada

Apesar de bem intencionada, parte das ações assistencialistas apenas reforça o comportamento de que a pessoa em situação de rua não é digna de conquistar nada e que deve continuar sobrevivendo com a ajuda de terceiros, sem fazer esforço algum. A coisa só piorou com a chegada da onda woke (de despertar), uma quase religião que acredita numa espécie de culpa genética carregada por uma elite privilegiada. Para amenizar o remorso pela boa vida que leva, a turma doa R$ 2 no farol, acelera o pé no conforto de seus importados blindados e se manda, como se a questão se dissolvesse no ar. 

A fim de evitar o círculo vicioso da mendicância, a cidade de Indaiatuba, no interior paulista, instalou placas em semáforos orientando os cidadãos a não darem esmolas. Como alternativa, a prefeitura indica o número de telefone da assistência social para quem deseja ajudar os necessitados. Em outra solução paliativa, a prefeitura de São Paulo oferece um programa de pagamento de passagem para quem quiser voltar para a cidade natal. Em 2021, até o mês de novembro, a medida resultou em pouco mais de 690 passagens para aqueles em situação de risco e vulnerabilidade social, segundo informou a Secretaria Municipal de Assistência Social.

Os locais públicos não podem ser tomados para uso particular. Calçadas não podem virar moradia provisória

“Não preciso. Já fui em albergue, mas não gosto, não quero”, disse Tadeu Pereira Alves, de 34 anos. Há um mês, ele se instalou na calçada da Avenida Paulista, em frente ao Parque Trianon-Masp. A barraca doada por uma ONG é equipada com travesseiro, cobertor, tapete na entrada e é decorada com uma guirlanda natalina. “Tem um pessoal de bom coração que ajuda”, afirmou Tadeu, sem largar o celular. Mais adiante, uma barraca comprada por R$ 3 de uma usuária de drogas abriga um casal e dois cachorros. Regiane do Nascimento e o marido estão acampados há cerca de um mês numa calçada perpendicular à avenida. “Vou para a rua, volto, desde pequena”, disse Regiane. Há dois anos desempregada, ela conta que também não frequenta albergues e acabou se acostumando com a situação. “Não me adaptei a viver em casas ou barracos.” 

Postagens Relacionadas