Não chama a polícia. Ela pode apavorar, te matar, te ferir. Não sei se é um surto, se são ordens ou desordens, mas estes últimos dias fizeram lembrar dos piores tempos que já vivemos sob o mando de militares cheios de insígnias e ódios, com o descontrole geral e um absurdo número de casos de despreparo e violência desmedida
Fosse só em São Paulo, o arremesso da ponte, o menino que roubava sabão e tomou 11 tiros pelas costas de um “puliça” que decididamente não devia estar trabalhando; idosa ferida, sangrando, junto com a família espancada dentro de sua casa invadida por uma tropa sem mandado; os bailes funks parados à base de porrada, sprays de dominação gasosa, cassetetes vibrantes, chutes e balas (de revólver, esclarecendo aos que conhecem gírias) para tudo que é lado. No transporte metropolitano, o homem agarrado, chutado, asfixiado, torturado, arrastado, e arrastado ainda pelo chão, morto. No Rio de Janeiro, tiros voadores, crianças que brincavam em praças sendo transferidas para brincar no céu …
Tudo filmado, registrado, mostrado em detalhes, vários ângulos, seja por câmeras de segurança ou por vizinhos corajosos, cenas repetidas dia e noite nos telejornais, discutidas, analisadas por especialistas, blábláblá de tudo quanto é lado nas redes sociais. Mas ainda piora quando a gente vê as tais autoridades e superiores com cara de tacho tentando se explicar para não cair, como já deveriam ter caído, e que sempre acabam é tentando justificar e salvar suas próprias peles. A demora em tomar alguma atitude, a tal justiça morosa. Sempre escapa uma informação que a gente não tinha, até porque são tantos os casos que não conseguimos acompanhar. No meio disso tudo sabemos, por exemplo, que o PM que deu um tiro no peito do jovem médico sem camisa que corria dele na escadaria de um hotel continua solto, nem afastado do trabalho foi.
Aí, por aqui temos um governador “dupla face”, que vira o rosto endurecido para o lado que o vento melhor toca. De manhã diz uma coisa, se desdiz se pego no flagra, diz que não disse, ou não diz mesmo, nem responde, e aparece logo depois para anunciar que mudou de ideia. Que, tadinho, só agora está mais esclarecido sobre a importância do uso de câmeras, câmeras essas que pretendia pudessem ser desligadas pelos policiais nas ações. Não sei quem é, mas adoraria aplaudir muito o repórter que o enfrentou quando tentou desconversar de uma pergunta. Está faltando esse tipo de coragem real na cobertura de imprensa: perguntar, insistir, investigar, confrontar.
(Pausa para pedir desculpas pelo mau humor, mas a sucessão de horrores está mesmo muito pesada)
Aí vem mais um acaso ao conhecimento: o da mãe folgada dentro do avião que queria que a moça cedesse a janela para o filhinho dela – que coisa fofa! Ah, e ainda acusou a moça de falta de empatia. Não se aborreçam comigo, mas lembrem que desde sempre falo abertamente do assunto. Não tenho filhos e sei o quanto bate preconceito sobre isso, como se mulheres mães fossem mais mulheres que outras. Desculpe aí, hein? Mais aplausos, desta vez para a moça que não arredou pé do seu lugar e que ainda vai poder vencer um bom processo por uso de imagem, fora o mais de um milhão de seguidores que ganhou do dia para a noite. Admiro sua calma. Rezo para que situações como essa se deem bem longe de mim. Fora as dúvidas que o caso ainda suscita: porque a tal mãe só pediu a ela? Que eu saiba o avião tem um monte de janelinhas com marmanjos como vemos no vídeo que circulou. Cadê a tripulação para interferir? Porque alguém em plena consciência pode ainda achar que ela deveria ter cedido o lugar para o birrentinho?
Está todo mundo alucinando, mesmo, de verdade? Não é impressão? Se a gente não pode mais chamar nem a polícia, como é que fica?
Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano, Coleção Cotidiano, Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital marligo@uol.com.br / marli@brickmann.com.br
Artigo publicado originalmente no Diário do Poder em 09.12.2024