A “Tragédia do Furiani”, como ficou conhecida, ocorreu no dia 5 de Maio de 1992. No Estádio Armand Cesari (Ilha da Córsega) jogavam o Bastia (time da casa) contra o Olympique Marseillle, pela Copa de Futebol da França, versão 1991/1992. Foi quando parte da arquibancada desmoronou, causando a morte de 18 torcedores e muitos sobreviventes feridos. No mesmo dia a promotoria pública francesa (parquet) entrou em ação e a Justiça, também no mesmo dia da tragédia, decretou a prisão do presidente do Bastia e da Federação Francesa de Futebol. E presos permaneceram por muito tempo. No final, foram condenados.Aqui no Brasil, a cidade de Mariana quase desaparece do mapa, deixa centenas de mortos, causa imensa destruição, contamina rios e mares e desmedidos danos ao meio ambiente e ninguém da mineradora responsável e culpada foi preso, ninguém está preso e nunca será preso. A mesma tragédia ocorreu em seguida, na cidade de Brumadinho. E até hoje também ninguém foi preso, ninguém está preso e nunca será preso.Aqui no Brasil a cervejaria Backer produz, vende e coloca no mercado bebidas (a cerveja belorizontina é uma de muitas e muitas outras) que já causaram mortes de consumidores e internações em estado gravíssimo de outros que ainda sobrevivem. E ninguém foi preso, ninguém está preso e nunca será preso.Agora é o Rio de Janeiro, a outrora Cidade Maravilhosa. Seus mais de 9 milhões de habitantes, sem contar os que estão de passagem e em trânsito, estão recebendo para consumo água fedorenta, água contaminada, água inservível e barrenta. E até agora, mais de 20 dias depois, ninguém foi preso, ninguém está preso e nem será preso.Sim, preso. Porque o que está acontecendo são crimes previstos no Código Penal (CP). E enquanto durar o envenenamento oficial da população, os culpados e responsáveis estão em situação de flagrante e desafiam decreto de prisão porque os crimes são permanentes.Crimes permanentes não são apenas os de sequestro e cárcere privado (artigo 148, CP), enquanto a vítima permanecer em poder de quem a sequestrou e/ou a encarcerou. Crime permanente é também aquele que, quem o praticou, está em flagrante-delito enquanto seu efeito é produzido. É o caso da água fornecida pela CEDAE (Companhia de Água e Esgoto do Estado do Rio de Janeiro). Aliás, a velhíssima e obsoletíssima “estação” de tratamento da CEDAE, à margem do Rio Guandu, ela não trata da água, mas do esgoto!!. E esgoto, por mais avançada que seja a tecnologia, jamais poderá se transformar em água potável, límpida, saudável e própria para o consumo humano. Nem de animais. Daí o crime permanente. Daí o flagrante-delito. Daí a necessidade do decreto de prisão.Vamos aos artigos do Código Penal que estão sendo, permanentemente, violados. Bastaria um apenas. Mas são quatro.”Artigo 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente – Pena detenção de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave”.”Artigo 270 – Envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destina a consumo. Pena – reclusão de 10 a 15 anos”.”Artigo 271 – Corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde: Pena – reclusão de dois a cinco anos”.”Artigo 278 – Fabricar, vender, expor à venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma, entregar a consumo coisa ou substância nociva à saúde, ainda que não destinada à alimentação ou a fim comercial – Pena – detenção de um a três anos e multa”.A questão do dolo, ou seja do propósito, da intenção do agente nestas práticas criminosas aqui reproduzidas, é dispensável para o seu enquadramento nas referidas figuras penais. Sim, porque o agente não precisa, propositalmente, envenenar, corromper, poluir ou fabricar, que são os verbos que a lei penal utiliza. Para a caracterização de tais crimes – e do estado de flagrância, eis que são delitos permanentes – basta que o agente tenha agido de forma potencialmente negligente, imprudente e imperita. Ou que, ciente do estrago que causou à saúde do próximo, mais ainda à saúde de uma população inteira, o agente cruze os braços, nada faça, ou venha tomar, com retardo, alguma providência para cessar os efeitos do crime. Parece que todas essas situações estão presentes nos casos-tragédias aqui abordados.
Jorge Béja, Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
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