A Justiça avançou em decisões voltadas à mulher em 2023, em temas como violência, assédio no trabalho e aborto. Mas juízes ainda descumprem o protocolo aprovado em março pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que tornou obrigatória a realização de julgamentos sob a perspectiva de gênero para evitar preconceitos e discriminação.
Por causa disso, tribunais superiores reformaram decisões de outras instâncias. Já a corregedoria do CNJ abriu procedimentos disciplinares contra magistrados que não obedeceram o protocolo.
A Sexta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), por exemplo, cassou uma decisão em setembro do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) que havia arquivado um inquérito sobre violência doméstica e familiar sofrida por uma mulher.
No caso, a vítima relatou a uma guarnição policial que havia sido agredida pelo namorado na casa dele. Ela foi submetida a exame pericial, que confirmou múltiplas lesões no corpo. No entanto, por considerar as provas frágeis, a Promotoria de Justiça pediu o encerramento do inquérito, sem determinar outras diligências.
A ministra Laurita Vaz, relatora do caso no STJ, disse que a decisão não considerou a devida diligência na investigação, nem aspectos básicos do protocolo do CNJ, sobretudo quanto à valoração da palavra da vítima, “que assume inquestionável importância quando se discute violência contra a mulher, especialmente quando há outros indícios que a amparem”.
O mesmo colegiado trancou em março uma ação penal que apurava o crime de aborto provocado pela própria gestante. A Sexta Turma da corte considerou que, no caso, houve quebra de sigilo profissional entre médico e paciente.
De acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar.
O colegiado entendeu que o médico, além de ter acionado a polícia por suspeitar da prática do delito, foi colocado como testemunha no processo, situações que violaram o Código de Processo Penal e geraram nulidade das provas.
A despenalização do aborto chegou a entrar na pauta do STF (Supremo Tribunal Federal) no plenário virtual. Embora a então presidente da corte, Rosa Weber, tenha votado a favor da descriminalização, o ministro Luís Roberto Barroso interrompeu em setembro o julgamento e tem indicado que não pretende recolocá-lo em pauta durante sua gestão à frente da corte.
A Terceira Seção do STJ também citou o protocolo do CNJ quando em maio estabeleceu que a mulher em situação de violência deve ser ouvida sobre o fim de medidas protetivas, independentemente da extinção da pena do autor.
Isto aconteceu porque a vítima não ofereceu representação contra o suposto agressor no prazo legal, o que gerou a extinção da punibilidade. O tribunal de segundo grau entendeu que deveria ser admitido também o fim dos motivos para a manutenção das medidas protetivas.
O corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, instaurou em setembro uma reclamação contra um juiz do Tribunal de Justiça do Amazonas que não interveio quando uma advogada foi chamada de cadela pelo promotor em uma sessão plenária.
Ele também abriu processo contra um juiz que disse que “gravidez não é doença” após uma advogada pedir adiamento de uma audiência para dar à luz.
A advogada Paula Ballesteros, coordenadora de projetos do Justa, organização da sociedade civil que atua no campo da economia política e Justiça, disse que a resolução do CNJ é importante para desnaturalizar determinados olhares em relação às mulheres.
“Não é porque magistrados são formados na área jurídica, que pressupõe a eles princípios como igualdade, tratamento diferenciado no caso de diferenças e imparcialidade. A gente vê interpretações em algumas decisões que ainda são muito desfavoráveis às mulheres pelo fato de elas serem mulheres, ou mesmo na questão de gênero”, afirma.
Para a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional, Cristiane Damasceno, o protocolo de gênero foi o trabalho mais relevante da Justiça no ano para combater a violência processual contra advogadas.
“O Judiciário deve levar a sério a aplicação dessa resolução. Não é para colocar a mulher numa posição de ser favorita no processo, mas dar uma visão de vítima a mulheres que sofrem ataques. Como em processo de família, em que ex-maridos tratam a mulher de forma pejorativa. O julgador precisa entender quando a outra parte está usando aquilo dentro da sua estratégia processual para desqualificar a mulher e vencer aquela batalha processual”, disse.
A secretária-geral do CNJ, Adriana Cruz, disse à Folha de S.Paulo que o conselho montou um comitê para ações de treinamento e ferramentas de aplicação do protocolo, como a criação de espaços e um banco de decisões.
Segundo a juíza, o objetivo é facilitar aos magistrados o acesso a conteúdos para que apliquem a norma “de maneira mais explícita”.
Para ela, o Poder Judiciário tem adotado passos “muito concretos e firmes” na direção de medidas que possam garantir que as diferenças de gênero, raciais e outros tipos sejam incorporadas na análise dos conflitos, mas que “é importante que toda a comunidade esteja envolvida nesse processo”.
“Não se muda uma cultura de séculos do dia para a noite, nem só com uma canetada. Então é preciso realmente um esforço contínuo e diário nessa direção”, afirmou.
A juíza ouvidora do STF, Flávia Carvalho, destaca que a corte desempenha papel fundamental ao orientar passos na direção daquilo que a Constituição determina sobre o tema, a exemplo do que fez nos casos de licença-paternidade, suspensão de concursos que limitavam a participação de mulheres e casamento entre pessoas do mesmo sexo.
“Apesar de sabermos que a direção é mais importante que a velocidade, a sociedade tem urgência em caminhar na direção certa, pois como nos lembra Emicida, ‘é tudo pra ontem'”, afirma. (Folhapress)