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*J. R. Guzzo: Tirania legalizada ameaça tirar dos pais a guarda dos filhos não vacinados

por Ornan Serapião
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Democracia, liberdade e direitos individuais estão sendo destruídos ativamente, todos os dias, num arco que vai do ministro Barroso ao prefeito de Osasco, dos burocratas da Austrália ao jornalista militante

Profissional da saúde administra vacina contra a Covid-19

Estão de volta ao mundo e ao Brasil, que até hoje vinha conseguindo evitar com relativo sucesso os surtos de tirania mais dementes dos últimos 150 anos, a estrela amarela e o pijama listado que denunciavam em público, na Alemanha nazista, o grande crime da época: “Você é judeu”. Vão dizer, é claro, que não é assim, e que a marca da maldição de 2022 é indispensável para salvar a humanidade – mas na verdade é assim mesmo que está sendo, e com viés de ficar pior. Esperar o que, se muitos dos próprios judeus, em Israel ou outros lugares – a maioria, talvez – são os primeiros a ficarem a favor da perseguição? Não é especificamente contra eles, desta vez. A estrela e o pijama, neste retorno triunfal do nazismo da Alemanha de Hitler, ou da ditadura da Rússia comunista de Stalin, estão destinados a denunciar outro crime: “Você não tomou vacina”. 

O não vacinado de hoje, por aqui e no resto do mundo, é o judeu da Berlim de 1935. O Brasil, como todos sabemos, foi largamente poupado do crime de perseguir judeus – talvez pelo seu próprio subdesenvolvimento, talvez por ficar na periferia do mundo, onde as ideias superiores da Europa civilizada, como campos de concentração ou fornos crematórios, demoram a chegar, ou não chegam nunca. Mas as “autoridades locais”, com o apoio desesperado das elites, da mídia e de tudo o que pode ter descrito como “de esquerda”, parecem obcecados num esforço sem precedentes para tirar o atraso – perdemos nossa chance com o judeu, lá atrás, mas dessa vez nós temos pela frente o “não-vacinado”. É ele a desgraça do mundo atual, aqui ou na Cochinchina. Para cima dele, então. Temos de liquidar essa raça. Não vamos perder a oportunidade – ou a gente acaba com eles, ou eles acabam com a gente. Basta olhar um jornal ou ouvir dois minutos de rádio ou televisão. O ataque, cada vez mais fanático, está lá, o tempo todo.

Os perseguidores não contam hoje em dia, para caçar não-vacinados, com os meios materiais de Hitler ou de Stalin, sua cópia comunista da mesma época. Não têm sua Gestapo nem a sua KGB nem outras facilidades. Vivem em democracias cada vez mais loucas para se comportarem como ditaduras, é verdade – mas é gente mole, medrosa e incapaz de ir para o pau como fazem os ditadores de verdade que gostariam de ser. Você acha que um prefeitinho desses, ou um governadorzinho meia-boca, ou um burocratinha com um talão de multa numa mão e carteirinha de procurador público na outra, tem coragem para mostrar a sua verdadeira cara? Não tem. Eles descobriram o quanto é bom, para eles próprios, agirem como agem as autoridades fascistas – mas não têm energia moral para serem fascistas de verdade. É por isso que a polícia do governador Zé Mané ainda não está prendendo não-vacinado, nem o Supremo Tribunal Federal reinventou a pena de morte e mandou alguém para a câmara de gás, ou coisa parecida. Mas enquanto isso, fazem todo tipo de perseguição que conseguem fazer impunemente – e que não ameace, segundo calculam, a sua própria segurança no emprego, no seu mundinho social e em tudo o mais que lhe interessa.

É tudo de uma desonestidade fundamental – com doses gigantes de hipocrisia, mentira e má intenção

A aberração mais recente, e mais sinistra, é a ameaça, por parte dessas autoridades que estão aí, de retirar dos pais a guarda dos filhos que não forem vacinados. Jamais, em 522 anos de história do Brasil, alguém propôs uma violência tão estúpida quanto essa. De novo, a lembrança é dos momentos mais negros da humanidade – as ditaduras comunistas na Rússia de Stalin ou na China de Mao Tsé-Tung, onde a autoridade pública se dava o direto de roubar as crianças de suas famílias para punir os pais por motivos políticos. Um despacho insano do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, dentro do progressivo processo de demência que vem marcando as sentenças da alta e baixa Justiça brasileira, abriu a porta para esse delírio do passado voltar ao Brasil de hoje. É obvio, quando as “instituições” permitem que a lei seja rasgada, que o instinto ruim das ditaduras vai sair correndo de dentro do armário, onde fica escondido até não haver mais risco em vir para fora; é o que aconteceu, na hora.

Para ficar apenas num exemplo, o procurador-geral da Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, já ameaçou tirar dos pais que não tiverem vacinado seus filhos a “guarda temporária” das crianças. Vamos ver, agora, o que ele faz na vida real. Na teoria, ao que parece, as escolas deveriam entregar ao Ministério Público suas listas negras, delatando os pais de alunos que não apresentarem atestados de vacinação. Presumivelmente, a partir daí, o MP de São Paulo vai exigir que as famílias lhe entreguem as crianças não-vacinadas. E o que o procurador Sarrubbo vai fazer com as elas, a partir daí? Podem ser mil, ou dez mil, ou cem mil, ou mais – ninguém, a começar pelo MP e pelos juízes, tem a menor ideia de quantos sejam. Falam em entregar a guarda para “os avós”. E as crianças que não tiverem avós, ou cujos avós não puderem cuidar delas? Sugere-se, vagamente, que a meninada seja entregue “ao Estado” – um horror absoluto, que só pode passar pela cabeça dos militantes mais histéricos da caça aos “não-vacinados”, e assim mesmo se eles não ficarem com o trabalho de se ocupar das crianças. O “Estado”? O Estado brasileiro não tem competência para cuidar nem das crianças abandonadas que, às dezenas de milhares, ocupam a paisagem das cidades – não consegue cuidar nem dos seus presidiários. O que o procurador Sarrubbo e seus colegas de MP vão fazer, por exemplo, com 1 milhão de crianças não vacinadas, ou seja lá quantas forem, em São Paulo e no resto do Brasil? Vão desmanchar famílias que estão perfeitamente constituídas, para criar uma multidão de crianças que não terão mais pai nem mãe? A Justiça vai ter de decidir, caso a caso, como ficam as coisas? Ou haverá cassações em massa da guarda paternal, por ordem do MP, do ministro Lewandowski ou do inspetor de quarteirão da prefeitura? É uma alucinação.

Esse mesmo procurador-geral, anos atrás, foi contra a reabertura das investigações sobre o assassinato do prefeito Celso Daniel, o crime que vai assombrar para sempre o PT, Lula e a esquerda brasileira. Mas agora, no caso das crianças não-vacinadas, ele quer lançar contra milhares de cidadãos indefesos, que não praticaram absolutamente nenhum delito, toda a fúria da máquina de repressão do Estado – a mesma que foi proibida de incomodar os mandantes de um crime abjeto. Que sentido faz um negócio desses? Ninguém poderia imaginar, quando foi dada a primeira ordem de “#fique em casa” – ou ponha máscara, use gel, não trabalhe e cale a boca – que tão pouco tempo depois a tirania legalizada de quem ocupa um emprego público estaria querendo tirar os filhos dos pais. É onde estamos no momento. Quais serão os próximos passos do STF, do MP e da prefeitada que se apaixonou pelo nazifascismo que está aí? Campos de reeducação para as crianças? Colônias penais infantis? Cadeia para os pais? Na verdade, é tudo de uma desonestidade fundamental – com doses gigantes de hipocrisia, mentira e má intenção. As autoridades, essas que não conseguem nem manter em funcionamento os sinais de trânsito, querem assumir a guarda familiar das crianças, num país de 200 milhões de habitantes, sem esgoto para metade da população e com sua miséria maciça exposta na cara, do Oiapoque ao Chuí. É obvio que não vão fazer coisa nenhuma; é óbvio que estão mentindo. Mas, com certeza estão aproveitando o pânico criado pela mídia, seus “cientistas” e seus fiscais para criar, eles próprios, o seu pânico particular – e exibir o quanto podem mandar na vida das pessoas. É uma oportunidade única para a demagogia, e sem assumir risco nenhum; afinal, quanto mais estúpida a decisão, mais palmas ela recebe no Jornal Nacional e no resto da imprensa. Ninguém vai perder a chance, é claro.

É assim que o prefeito de São Bernardo, para ficar estritamente em exemplos paulistas nesta onda de boçalidade agressiva levantada para impor a vacina, tomou a prodigiosa decisão de segregar em classes separadas, nas escolas municipais, os alunos que não estiverem vacinados. Seu despacho a respeito é uma declaração de guerra à inteligência comum. Ele admite que a lei não obriga ninguém a se vacinar, e que as crianças de São Bernardo não podem ser impedidas de frequentar a escola por não estarem vacinadas. Na mesma folha de papel, porém, o prefeito diz que vai denunciar ao MP os pais de alunos não vacinados – enquanto promete, também, criar classes separadas para a população infantil do município. Os que não tiverem tomado a vacina ficarão em salas isoladas; não poderão estudar junto com os colegas, nem brincarem juntos no recreio. É como se fazia, antigamente, com os alunos negros nas escolas americanas ou da África do Sul; fiquem para lá, naquele canto, separados dos brancos. Receberão o selo de párias da prefeitura de São Bernardo – “não-vacinados”, filhos de inimigos da pátria, negacionistas, impuros, ameaça à saúde alheia, criminosos em potencial, direitistas, bolsonaristas. Quem deu esses poderes extraordinários ao prefeito? Que lei o autoriza a tratar desse jeito infame crianças de oito anos de idade? Seu colega de Osasco, no mesmo tipo de depravação, criou um “Certificado de Coragem” para as crianças vacinadas – exatamente como os diplomas de “herói” que a Rússia de Stalin dava a crianças que denunciavam os próprios pais por falarem mal do governo, ou prestavam outros serviços destacados ao regime. (Coisa parecida acontecia com a juventude nazista na Alemanha, ou a juventude fascista na Itália.) As crianças viravam estrelas da juventude comunista; os pais iam para o campo de concentração na Sibéria.

A lista de aberrações como essas poderia continuar por páginas e mais páginas – publicações digitais, como se sabe, não têm os limites físicos de publicações feitas em papel, nem dos programas que precisam obedecer ao tempo marcado no relógio. Mas quem vê o procurador de São Paulo e os prefeitos de São Bernardo e de Osasco não precisa ver mais nada, não é mesmo? É o que dá para ter, num país em que o ministro Barroso, encantado pela insensatez irresponsável que faz do STF essa delegacia de polícia de república bananeira que temos aí, proíbe os cidadãos brasileiros “não-vacinados” de entrarem em seu próprio país. Foi mais um absurdo que não deu em nada, e nem poderia dar, mas sua decisão foi aplaudida pela imprensa brasileira como uma sentença do Rei Salomão. É o mesmo aplauso que os jornalistas reservam para as aberrações dos prefeitos de São Bernardo, Osasco e dezenas de outros – que contam, também, com a admiração encantada de uma parte importante da população, feliz de viver submetida à uma das maiores lavagens cerebrais já praticadas na história humana. O prefeito propõe que se volte à época da Rússia de Stalin. Recebe uma salva de palmas da imprensa, dos professores da USP e dos banqueiros de esquerda.

Nada disso tem a ver, realmente, com a saúde pública – embora tenha muito a ver com a covardia terminal diante da morte demonstrada por tanta gente hoje em dia. O que se pode querer num mundo onde o sujeito pega uma gripe, não vai nem ao pronto socorro, e acha que está correndo risco de vida? É o ambiente ideal para os falsários políticos. A guerra suja para impor a vacina, e todo o resto do arsenal de repressão que se montou em nome do combate à Covid, são, na verdade, uma agressão direta e já sem disfarces à democracia. Não é, obviamente, algo que está acontecendo só na Grande São Paulo. Trata-se de um assalto mundial às liberdades. Não querem proteger a sua saúde – querem roubar os seus direitos. Não estão interessados em saber se a vacina funciona mais ou menos como proteção contra o vírus, da mesma forma como nunca estiveram interessados em saber se uma máscara de pano pode salvar a sua vida – o que querem é controlar a sociedade. Querem um mundo de funcionários, de fiscais, de comitês médicos, de cientistas que não admitem discutir questões de ciência, de protocolos, de quem cria segregação de classes nas escolas.

Os direitos individuais estão sendo destruídos ativamente, num arco que vai do ministro Barroso ao prefeito de Osasco

Está acontecendo não apenas no Brazilzão primitivo, mas em lugares considerados até pouco tempo como as mais exemplares democracias do mundo. Na Austrália, um ministro de terceira categoria tranca o tenista Novak Djokovic num hotel-presídio, impede que participe de um dos mais prestigiados torneios de tênis do circuito profissional e o expulsa do país como um criminoso vulgar – tudo porque ele não toma vacina anti-Covid e é um adepto da medicina alternativa. O que a Austrália vai fazer agora? Prender quem se trata com homeopatia? O Canadá proíbe os não vacinados de comprar bebida – ou maconha. Quer se chapar? O governo canadense exige que você mostre o seu passaporte vacinal. Na França, o presidente da República declara em público que seu objetivo é “irritar” os não-vacinados. Nas mais formosas democracias europeias, essas que dão lições permanentes de conduta ao Brasil “dos militares”, da “direita” e da “destruição a Amazônia”, tocam a polícia em cima da população e criam multas ruinosas para quem não se vacina – ou querem que eles sejam processados na justiça criminal. 

É um mundo cada vez mais escuro. A democracia, a liberdade e os direitos individuais estão sendo destruídos ativamente, todos os dias, num arco que vai do ministro Barroso ao prefeito de Osasco, dos burocratas da Austrália ao jornalista militante, da empresa que descobriu a “questão social” aos cartórios de combate ao racismo, à desigualdade e ao aquecimento da calota polar. Não vão deixar que a Covid passe. E se ela passar, não têm a menor intenção de devolver as liberdades que estão destruindo agora.

*J.R. Guzzo é jornalista. Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi um dos criadores da Veja, revista que dirigiu durante quinze anos, a partir de 1976, período em que sua circulação passou de 175.000 para 1 milhão de exemplares semanais. Correspondente em Paris e Nova York, cobriu a guerra do Vietnã e esteve na visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972. Responsável pela criação da revista Exame, atualmente escreve no Estado de S. Paulo e na Gazeta do Povo.

Este artigo foi publicado originalmente na Jovem Pan em 29.01.2022

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