Milhares de militantes do chamado “kirchnerismo” passaram a noite de segunda para terça-feira (23/08/2022) em vigília em frente ao edifício onde Cristina Kirchner mora em Buenos Aires. A militância foi convocada para ocupar o espaço dos que protestavam contra a ex-presidente e atual vice-presidente, acusada de liderar uma quadrilha que desviou cerca de 1 bilhão de dólares através de obras públicas pelos quais o Ministério Público pediu 12 anos de prisão e a inelegibilidade perpétua para qualquer cargo público. “Um dos maiores méritos do promotor Diego Luciani foi fazer esta denúncia com essas pessoas no poder e com Cristina Kirchner como a pessoa com mais poder no país. Pela primeira vez na história argentina, vemos um processo desta dimensão com os réus no poder”, destaca o analista político Joaquín Morales Solá. Foi um pedido de condenação, mas, pela repercussão, pareceu uma sentença. “É a maior manobra de corrupção que se tenha conhecido no país. A corrupção foi a regra. O estado de direito foi excluído e esse desequilíbrio deve ser restaurado com uma sentença justa. Está nas suas mãos, senhores juízes, impedir que continuem a banalizar a corrupção sistêmica, orquestrada nas mais altas esferas do Poder Executivo em cujos funcionários infieis o povo depositou a sua confiança”, descreveu o promotor Diego Luciani. “Senhores juízes, é corrupção ou Justiça”, pressionou. Nas ruas, a reação foi de protesto e de panelaço contra aquela que governou o país como presidente e que continua a governar, mesmo na vice-presidência. No começo da noite, logo depois que o promotor pediu a condenação, centenas de pessoas, com bandeiras argentinas, foram até a porta do edifício onde Cristina Kirchner mora. Batiam panelas enquanto gritavam “ladra”. Quem passava de carro buzinava e somava-se ao coro. Aos poucos, as centenas tornaram-se milhares. Foi quando o chamado “kirchnerismo” reagiu. As bases convocaram a militância organizada a defender Cristina Kirchner. O clima foi de tensão entre manifestantes contra e a favor. Houve confusão e a polícia interveio para separar os grupos. Segundo uma pesquisa da Universidade de Buenos Aires, os que apoiam Cristina Kirchner são minoria. Um estudo realizado nas quatro principais e mais povoadas províncias do país, indica que 80% dos argentinos consideram Cristina Kirchner culpada. Somente 8% acham que ela é inocente. 12% disseram não ter opinião.
“Estou diante de um pelotão de fuzilamento”
Cristina Kirchner se disse perseguida pela imprensa e pela Justiça. “Estou diante de um pelotão de fuzilamento midiático-judicial”, disse. Em dezembro de 2019, quando o julgamento começou, antes de ser interrompido pela pandemia, Cristina Kirchner tinha acabado de ser eleita vice-presidente. Ela se negou a responder as perguntas da Justiça e disse que seria absolvida pela história. Quando percebeu que viria o pedido de prisão, resolveu falar. Mas, pela ordem processual, só poderá falar agora no final do julgamento. Por isso, anunciou que vai falar nesta terça-feira às 11 da manhã, hora local, por meio das suas redes sociais. O presidente Alberto Fernández emitiu uma nota oficial para “condenar” o que também chamou de “perseguição judicial e midiática”. Para o presidente, “não há provas” que comprovem uma formação de quadrilha e a perseguição, segundo ele, visa tornar Cristina Kirchner inelegível para as eleições, a exemplo de outros líderes populares como o ex-presidente Lula. No entanto, na Argentina, a “ficha limpa” não se tornou lei, apesar do esforço da oposição. Cristina Kirchner poderá ser candidata nas eleições do ano que vem. Até que uma eventual sentença seja confirmada pelo Supremo Tribunal, podem se passar anos.
Quadrilha
Para a oposição, as provas apresentadas pelo Ministério Público são “demolidoras e escandalosas” e marcam “um momento histórico para o país”. O promotor Diego Luciani pediu que Cristina Kirchner seja condenada a 12 anos de prisão efetiva por liderar uma quadrilha integrada por um total de 12 pessoas que cometeram fraude ao Estado por cerca de US$ 1 bilhão, um valor que ainda precisa ser atualizado e que poderia superar os US$ 2,5 bilhões. Segundo a acusação, a quadrilha de Cristina Kirchner começou quando o seu falecido marido, Néstor Kirchner, era presidente e continuou quando ela foi eleita duas vezes. No total, foram 12 anos entre 2003 e 2015.
Eram integrantes da quadrilha o ex-ministro do Planejamento, Julio de Vido, e o ex-secretário de Obras Públicas, José López, além de Lázaro Báez, um testa-de-ferro que os Kirchner transformaram em empresário. Todos esses nomes já estão condenados em outros processos e José López foi flagrado em 2016 quando tentava esconder num convento sacolas com mais de US$ 9 milhões. Este processo julga apenas os eventuais crimes cometidos com as obras públicas na província patagônica de Santa Cruz, berço político dos Kirchner. Há outros três processos nos quais Cristina Kirchner também é ré. Esses processos são mais amplos e envolvem todo o país. Portanto, este pode ser o menor dos problemas que Cristina Kirchner terá pela frente. Durante os 12 anos dos governos Kirchner, todas as obras na província de Santa Cruz foram ganhas pelo empresário Lázaro Báez.
Empreiteira criada dias antes da posse
Os Kirchner colocaram Lázaro Báez para comandar uma empresa, a Austral Construções, criada dias antes da posse de Néstor Kirchner em maio de 2003 e desmantelada dias antes do final do mandato de Cristina Kirchner em dezembro de 2015. Segundo os investigadores, Lázaro Báez não tinha nenhuma experiência como construtor. Das 51 obras estudadas, metade não foi terminada, mas foram pagas integralmente. As licitações seriam forjadas com empresas de fachada que também pertenciam a Lázaro Báez, nesse caso, como falso participante. Depois de paga a obra, o dinheiro voltaria ao casal presidencial através de dois hoteis dos Kirchner. Lázaro Báez e os Kirchner também teriam forjado diárias para lavar o dinheiro. Os hoteis viviam cheios na contabilidade, embora não tivessem nenhum hóspede. Se Lázaro Báez não tinha posses antes de 2003, ao terminar o segundo mandato de Cristina Kirchner, já era dono de 415 mil hectares em Santa Cruz, equivalentes a mais de 20 mil cidades de Buenos Aires. E essa é apenas uma parte do dinheiro que a Justiça quer agora recuperar.
*jornal grande bahia com informações de Marcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires.