Ex-ministro da Fazenda afirma que país não tem justificativa econômica, social e financeira para manter estatais; para o economista, a PEC dos Precatórios é a ‘pior da história’
IARA MORSELLI/ ESTADÃO CONTEÚDO
Os debates sobre a privatização da Petrobras ganharam fôlego novo nas últimas semanas após uma série de declarações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à estatal. O descontentamento do chefe do Executivo pode ser explicado pelos últimos reajustes no preço dos combustíveis, que elevaram a gasolina para patamares inéditos acima de R$ 7 o litro e ainda reacenderam rumores de uma nova onda de paralisação de caminhoneiros em protesto ao preço do diesel. Para o economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, o país não possui motivos para manter a Petrobras — e todas as outras empresas públicas — sob a sua responsabilidade. “Não há nenhuma justificativa estratégia, econômica, social e financeira para a existência das estatais no Brasil.” Em entrevista ao site da Jovem Pan, o economista e sócio da Tendências Consultoria Integrada afirma, porém, que os motivos que levam Bolsonaro a buscar a venda da estatal não possuem fundamentos. “O presidente quer privatizar a Petrobras não porque ele acha que vai ser um benefício para o país, mas porque ele se deu conta de que não controla a Petrobras”, afirma. Para Nóbrega, a revolução gerada pela desestatização da Telebras no fim da década de 1990 deve servir de exemplo de como as empresas estatais podem ser mais eficientes quando colocadas à venda. “O país ganhou muito com a privatização das telecomunicações, e vai ganhar muito com a privatização de outras estatais, inclusive essas vacas sagradas, como a Petrobras e o Banco do Brasil.”
Além da agenda de privatizações, Nóbrega elenca as reformas tributárias e administrativas como fundamentais para tirar o país da armadilha da baixa produtividade e crescimento pífio. Os desafios para a recuperação sustentável ficaram ainda maiores com a aceleração dos juros pelo Banco Central em resposta ao aumento do risco fiscal após o patrocínio do governo à PEC que adia o pagamento dos precatórios e muda as regras do teto de gastos. “A economia provavelmente crescerá menos do que se pensava em 2022, haverá menos emprego e a renda dos trabalhadores poderá estagnar, ou cair”, diz ele, que projeta alta abaixo de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano que vem. Nóbrega classificou a PEC dos Precatórios como “a pior da história”, e acredita que ainda há espaço para que o texto seja rejeitado pelo Congresso. A proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados em primeiro turno na quarta-feira, 3, com 312 votos — quatro a mais do que o necessário. Os parlamentares voltam a debater o texto nesta semana; caso seja aprovada, vai ao Senado. “A resistência do Senado, como tem sido maior do que na Câmara, pode ser um fator para a rejeição dessa proposta. Não dá para dizer que o governo já ganhou essa batalha”, afirma o ex-ministro. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Qual seria a saída para a Petrobras? É a privatização? A privatização da Petrobras é mais do que uma justificativa forte no Brasil. Não apenas a Petrobras. Não há nenhuma justificativa estratégica, econômica, social, financeira, para a existência das estatais no Brasil. A experiência mostra que as empresas estatais privatizadas passaram a operar de forma melhor, mais eficientemente, gerando mais imposto, mais emprego. Quando as telecomunicações estavam nas mãos das estatais, se levava até dois anos para comprar um telefone. Hoje você entra em uma loja e já sai falando no celular. O país ganhou muito com a privatização das telecomunicações, e vai ganhar muito com a privatização de outras estatais, inclusive essas vacas sagradas, como a Petrobras e Banco do Brasil. O tema da privatização voltou à luz recentemente por razões absolutamente incríveis. O presidente Bolsonaro quer privatizar a Petrobras não porque ele acha que vai ser um benefício para o país, mas porque ele se deu conta de que não controla a Petrobras. Ele se deu conta que não pode mandar a Petrobras ter prejuízos fixando o preço dos combustíveis abaixo do seu custo de produção.
E não é simples privatizar a Petrobras. A sociedade brasileira, na sua maioria, não aceita a privatização. É preciso ter uma liderança política com capacidade de convencer a sociedade de que a Petrobras será melhor para o país privada do que estatal. Em segundo lugar, uma privatização tem que ter cuidados. Não se pode transferir um monopólio estatal para um monopólio privado. É preciso um modelo de privatização que promova uma fragmentação da empresa, e isso leva de um a dois anos para fazer.
Privatizar a Petrobras vai baixar o preço dos combustíveis? Pode até reduzir, mas não ao ponto de fazer uma mudança. Vai haver eficiência, o setor privado tende a ser mais eficiente do que o público. Isso aconteceu na Telebras. Caiu o preço da linha e do aparelho com o aumento substancial da escala de produção e venda. Tudo isso pode acontecer também. O normal é que tenha alguma queda, mas nada tão expressivo que neutralize o efeito resultante da valorização dos preços internacionais do petróleo.
O que pode ser feito para reduzir os preços dos combustíveis? Para reduzir o preço de combustíveis, tem que fazer o tudo errado: fixar o preço abaixo do seu custo, como foi feito no período da Dilma Rousseff, com prejuízos brutais para a Petrobras. O preço está subindo porque o petróleo está subindo no mundo inteiro, e, além disso, o real está se desvalorizando em uma intensidade muito maior que em outros países. Não tem nada o que fazer, é esperar que o mercado se acomode. Tem outras ideias de alterar o ICMS [imposto de origem estadual] e criar um fundo de estabilidade. Tudo isso não tem a menor racionalidade econômica. Se baixar o ICMS e reduzir o preço dos combustíveis, está se subsidiando e vendendo abaixo do mercado. Isso neutraliza o papel que o sistema de preços tem em uma economia de mercado. Ter um fundo de estabilidade vai requerer dinheiro público, e o Brasil não está na idade de criar um fundo com essa finalidade quando se falta dinheiro para ciência, tecnologia e Bolsa Família. São ideias sem base racional econômica. Tem que fazer o que está sendo feito. A Petrobras tem que ter uma política de preços que leva em conta os valores internacionais das cotações do petróleo e seus derivados. Do contrário, ela passa a ter prejuízo.
Quais os efeitos na economia caso a PEC dos Precatórios seja aprovada? O efeito disso tudo foi uma queda súbita de confiança na economia brasileira, na credibilidade do governo. Isso implicou desvalorização maior do real, os juros futuros explodiram e tudo isso levou a um risco de desancoragem das expectativas dos agentes econômicos em relação à inflação futura. Por isso, o Banco Central ficou sozinho, já que a âncora fiscal foi perdida com a violação da lógica do teto de gastos. Embora tenha sinalizado que a decisão seria de 1 ponto percentual a mais na Selic, o Banco Central foi para 1,5 ponto e sinalizou que a próxima reunião também será na mesma magnitude. Nós achamos que haverá um terceiro aumento de 1,5 ponto, terminando esse ciclo por volta de 11,75% ao ano. Isso significa que haverá impacto na atividade econômica. A economia provavelmente crescerá menos do que se pensava em 2022, haverá menos emprego, a renda dos trabalhadores poderá estagnar, ou cair.
Como fica a imagem de ‘fiador’ de Paulo Guedes em meio a tudo isso? É preciso dizer que o ministro Paulo Guedes tem credenciais inequívocas para estar onde está. Ele tem um doutorado em uma das melhores universidades do mundo e tem experiência no mercado financeiro. Mas ele fez promessas além do que era a sua capacidade. Ele subestimou as dificuldades institucionais, políticas e culturais para a execução de um amplo programa de privatização. Por aí ele já começou a perder a credibilidade. E agora essa de ele próprio propor o furo no teto para turbinar um programa que tem objetivos eleitoreiros. Ele perdeu muito da confiança que tinha do mercado financeiro. Não sei o grau disso, mas certamente é uma percepção generalizada no Brasil.
Os efeitos positivos do Auxílio Brasil aos mais pobres vão ser superados pelos reflexos dessa medida na inflação e na subida dos juros? Uma parte considerável desse benefício aos brasileiros de menor renda será neutralizada pela quebra de renda, a dificuldade de conseguir emprego e a inflação. Por outro lado, tudo indica que o presidente Bolsonaro está mirando o eleitor de baixa renda do Nordeste, onde a sua popularidade é a mais baixa do país. Pode ser que ele não consiga. Quem ganha até dois salários mínimos no Nordeste representa 84% da população. E depois que o Lula foi presidente e criou o Bolsa Família, isso desenvolveu uma identidade muito forte entre esse eleitor pobre. Claro que muitos deles vão se sentir agradecidos ao presidente Bolsonaro pelo aumento do benefício. Podem falar que com o auxílio emergencial o Bolsonaro ganhou popularidade fortemente nesse segmento. É verdade. Mas o Lula, nessa época, não era candidato. Naquela época ele estava na cadeia, e agora está livre. Pode ser que a expectativa que o governo alimenta que isso vai turbinar a popularidade do Bolsonaro nesse segmento da população pode ser que não se materialize, ou se materialize de uma forma muito pequena.
Havia uma saída melhor para o Auxílio Brasil? Claro. Vários estudos foram feitos mostrando que não precisava de toda essa manobra, dessa contabilidade criativa, a mudança do período de cálculo do teto. Bastava o governo eliminar outros gastos. Por exemplo, negociar com o Congresso o fim das emendas do relator. Já que os deputados e senadores estão tão impressionados com a necessidade de amparar 20 milhões de brasileiros que estão passando fome, por que não fazem a sua parte? Por que não oferecem eliminar, pelo menos temporariamente, o fundo eleitoral e o fundo partidário? Quem vai financiar essa turbinagem do Bolsa Família são aquelas pessoas, empresas e governos que passaram anos lutando na Justiça para reconhecer o seu direito a indenização, e depois de toda essa luta, gastos com advogado, o governo diz que não paga.
A pior solução é a PEC. Ela incorpora uma atitude de desobediência a uma decisão judicial e a ideia do calote. A obrigação de pagar o precatório é exatamente igual à de pagar o título de uma dívida pública. E o mesmo devedor é o Tesouro. Por que ele vai pagar um e não pagar o outro? É um absurdo para uma equipe que se diz liberal. Ela está violando um direito de propriedade. A experiência mundial aprova o papel do direito de propriedade na decisão de investir, de assumir risco, de gerar prosperidade. Esse direito não é só sobre imóveis. Há a propriedade do crédito, que dá o direito de receber uma determinada quantia. A proposta do governo viola essa regra. Esta é a pior PEC da história. Ainda há espaço para o abandono dessa ideia. Ela passou com uma maioria estreita. Essa PEC corre o risco de não ser confirmada no segundo turno, e provavelmente não passar no Senado. A reação do Senado é muito pior do que na Câmara. A minha expectativa é que a resistência do Senado, como tem sido maior do que na Câmara, pode ser um fator para a rejeição dessa proposta. Não dá para dizer que o governo já ganhou essa batalha.
O que esperar da trajetória de juros após o BC acelerar a Selic? E qual será o efeito desses juros altos na economia em 2022? O efeito é desacelerar o ritmo de atividade econômica. Isso é inevitável porque há o encarecimento do crédito, a redução da demanda de consumo e investimento, e tudo isso reduz a atividade econômica. Por isso, as projeções de crescimento de 2022 estão sendo revistas. A partir do próximo ano, o Brasil cai, infelizmente, na sua mediocridade. Isto é, um potencial de crescimento muito baixo, que fica em torno de 2% ou menos. O Brasil só voltará a crescer muito mais do que isso com reformas estruturais, particularmente no campo tributário, fiscal e administrativo, permitindo um aumento substancial da produtividade. A produtividade é o principal fator de geração de riqueza de um país. No Brasil, além da produtividade estar quase zerada, nós temos um nível de investimento muito baixo, que é outro fator de geração de renda e riqueza. Não se tem razão para acreditar que o potencial de crescimento do país possa aumentar a curto prazo, dentro de um ou dois anos, ainda que as reformas aconteçam. A nossa projeção para o PIB é de 1,8%, porque acreditávamos que a recuperação dos serviços seria um fator de impulso na atividade econômica que neutralizaria o menor crescimento da indústria. Mas o que nós estamos vendo agora é que as projeções todas são revistas. Não sei ainda qual é o número, mas acho que vai ficar abaixo de 1%.