Por que algumas pessoas infectadas com o novo coronavírus apresentam apenas sintomas leves ou ficam assintomáticas? É uma das grandes dúvidas que a comunidade científica está tentando esclarecer sobre a covid-19.
Para responder a essa e outras perguntas sobre o novo coronavírus, especialistas de todo o mundo estão tentando entender como nosso sistema imunológico responde quando é atacado pelo SARS-CoV-2.
Um estudo publicado recentemente na revista Cell apresenta uma hipótese esperançosa: ter superado outros coronavírus pode deixar alguma imunidade no corpo.
Isso é conhecido como imunidade cruzada.
Antes de explicar melhor esse conceito, é importante revisar quais tipos de imunidade existem.
Inata e adaptativa
Imunidade é o conjunto de mecanismos que nos protegem de infecções. É uma complexa rede de células, órgãos e tecidos que trabalham juntos para se defender contra microrganismos e substâncias tóxicas que podem nos deixar doentes.
Existem dois tipos de imunidade: inata e adaptativa.
A resposta inata é a primeira a se desenvolver e geralmente é eficaz na eliminação de diferentes tipos de invasores.
“É composta pelo conjunto de barreiras, sensores e atores que participam de maneira mais ou menos específica no bloqueio da entrada de todos os agentes infecciosos aos quais estamos continuamente expostos ao longo do dia”, explica à BBC News Mundo Estanislao Nistal, virologista e professor de microbiologia na Universidade CEU San Pablo, em Madri, Espanha.
Já a imunidade adaptativa “estabelece uma resposta específica contra o agente infeccioso específico ou contra as células que abrigam esse microrganismo”.
Essa resposta leva vários dias para chegar.
A resposta adaptativa é dividida em dois ramos: imunidade derivada de anticorpos, também denominada imunidade humoral, e imunidade celular exercida por células chamadas linfócitos T (ou células T).
Memória
Uma característica particular da resposta adaptativa é que ela deixa memória. Ou seja, lembra dos patógenos com os quais seu corpo entrou em contato no passado e, portanto, saberá combatê-los no futuro.
“A partir do momento em que nascemos, somos confrontados com muitos agentes infecciosos. E o corpo precisa saber como reagir de maneira específica contra o que é estranho e o que pode causar uma patologia”, diz Nistal.
“Quando nos deparamos com um agente infeccioso pela primeira vez, normalmente a resposta que ativamos é uma resposta muito boa, que produz um tipo de memória capaz de durar a vida inteira”, explica o virologista.
É aí que entra o conceito de imunidade cruzada, que consiste na capacidade de alguns dos linfócitos envolvidos na resposta adaptativa (linfócitos ou células B ou T) em reconhecer sequências de um vírus, bactéria ou agente infeccioso e ser capaz de identificá-las no futuro em outro agente infeccioso.
Mas o SARS-CoV-2 é um novo vírus, então pode haver imunidade cruzada?
Família de coronavírus
O SARS-CoV-2 pertence à família dos coronavírus. Existem sete coronavírus identificados, mas, destes, a população está exposta a quatro tipos anualmente, que o professor Nistal chama de “coronavírus sazonais”.
Em geral, o que acontece com esses coronavírus é que a maioria das pessoas não apresenta complicações graves – e o mais normal é que eles produzam resfriados, explica o virologista.
“E esses resfriados normalmente ativam os linfócitos que temos, que foram ativados anteriormente”.
Pesquisadores do Instituto de Imunologia La Jolla, na Califórnia, autores do estudo publicado na revista Cell, usaram amostras de sangue coletadas entre 2015 e 2018 de pessoas que haviam superado os coronavírus sazonais, mas que, pelas datas, ainda não podiam ter sido expostas ao novo SARS-CoV-2.
O que eles fizeram com essas amostras foi colocá-las em contato com sequências ou fragmentos do SARS-CoV-2, e eles viram que havia uma reativação celular.
“O que os pesquisadores veem é que existem linfócitos, tanto B quanto T, capazes de reconhecer esses fragmentos e ativar”, diz Nistal. “Isso é o que significa que eles têm imunidade cruzada”.
O resultado, para o especialista, era “bastante esperado”, porque, embora seja um novo vírus, “possui cerca de 80% de homologia com Sars (sigla em inglês para síndrome respiratória aguda grave, que apareceu em 2002) e entre 40 e 60% de homologia com coronavírus circulantes ou sazonais”.
“Se você analisar a sequência de aminoácidos que as proteínas virais produzem, perceberá que existem áreas muito diferentes entre os coronavírus circulantes e esse SARS-CoV-2, mas existem áreas altamente conservadas. E, portanto, espera-se que um linfócito que reage contra essa sequência também possa reagir contra a sequência SARS-CoV-2”.
Para o especialista, isso explicaria, em parte, por que existem pessoas com sintomas muito leves ou mesmo sem sintomas. “Outra parte também seria explicada pela imunidade inata”, diz ele.
E o que nos diz em relação a uma possível vacina para o novo coronavírus?
Proteção para o futuro
Para Estanislao Nistal, esse estudo tem uma implicação importante.
Se as vacinas que começaram a ser desenvolvidas contra a Sars e depois foram abandonadas tivessem sido desenvolvidas, “elas poderiam ter servido para nos proteger do novo vírus (não para que não fôssemos infectados, porque os linfócitos T não bloqueiam inicialmente a entrada do vírus na célula, mas ajudam a destruí-lo)”, explica Nistal.
“Portanto, a primeira lição a ser aprendida com tudo isso é que, quando você inicia algo, deve ser concluído. Só porque não há agente infeccioso não significa que ele não existirá no futuro, especialmente com o coronavírus”.
G1