Excelentíssima Senhora Ministra Rosa Weber,
Antes de mais nada, é devido expressar reconhecimento e louvar a trajetória de Vossa Excelência na Suprema Corte, marcada pelo diálogo, pela moderação e por um devotado empenho no resguardo de nossa Carta Maior, virtudes que encorajam este manifesto.
Pois bem, momento houve em que Vossa Excelência demonstrou inclinar-se contrariamente à “prisão em 2ª instância”, divergência com a sábia posição firmada pelo pleno do STF em 2016. Sim, haverá mentes muito respeitáveis com tal posicionamento. Todavia, é oportuno registrar que um expressivo número (quiçá, maioria) das grandes mentalidades do Direito considera imprescindível que o precedente do STF ora em vigência seja mantido, isto é, que a pena de restrição de liberdade siga sendo aplicada a condenados a partir da 2ª instância, o que se coaduna plenamente com o preceito constitucional (como se pretende aqui demonstrar).
Aliás, pela publicização que o assunto adquiriu, esse é também o anseio da maior parte da população brasileira.
Mas, o que levará doutos juristas a postularem que o precedente do STF seja preservado? Ora, a motivação iniludível é apenas assegurar a “efetividade da lei penal”. E quais serão os fundamentos? A isso vamos.
1. A que se destina a lei penal: ser instrumento da chancela estatal das relações sociais harmônicas (efeito amplo) ou dar garantias àquele que opta por adotar condutas antissociais (efeito restrito)? Eis a questão norteadora da presente sustentação, cuja resposta é indissociável dos valores insculpidos em nossa Carta Maior como justiça, liberdade e convivência social harmônica. Com efeito, não haverá justiça nem, por conseguinte, harmonia social sem uma lei penal de inelutável efetividade a garantir a conduta reta e a inibir o comportamento antissocial dos indivíduos.
2. Máxima cautela convirá para evitar-se a armadilha retórica que sustenta a insidiosa tese de que só existe “trânsito em julgado” após a impetração de todo e qualquer recurso admitido no regramento processual, tese com ares de fundamentalismo, que nega a Constituição como um “corpus” (que de fato é) para, fragmentando-a, apegar-se a uma distorção da literalidade do texto.
3. A Constituição, no art. 5º, combinados os incisos LXI e LVII, estatui: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (…)”; e “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É malabarismo retórico, sem qualquer zelo pelo Direito, afirmar que, no referido dispositivo, a CF proíbe o início da pena de restrição de liberdade imediatamente ao acórdão da 2ª instância, no qual, sabe-se bem, ocorre o exaurimento de qualquer dúvida quanto à autoria do crime. Sendo que, aliás, o texto não faz alusão a “prisão”, “restrição de liberdade”, “grau de jurisdição” nem a “cumprimento da pena”.
4. Sabidamente, o “trânsito em julgado” é imprescindível à “segurança jurídica” (elemento definidor de um regime democrático). Ora, uma determinada matéria transita em julgado quando se torna insuscetível de alteração mediante recurso. Agora, é preciso ter em vista que os autos de um processo contêm diversas matérias, podendo cada qual transitar em julgado em diferentes momentos. Assim, a “autoria do crime” é apenas e tão-somente uma entre várias matérias nos autos de um processo penal; e tem obviamente seu “trânsito” antes e sem prejuízo doutras que a defesa poderá seguir questionando.
5. Assim, exaurida a matéria da “culpabilidade” (o que ocorre nas instâncias ordinárias), é teratologia retórica dizer que, ainda assim, persiste a “presunção de inocência”. Vale lembrar o que prelecionou o saudoso Ministro Teori Zavascki no sábio voto de 2016 (HC 126.292): “(…) tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado”.
6. É adequado asseverar-se, pois, que, havendo o tribunal confirmado a sentença condenatória, tornando-a irrevogável, é uma pretensão totalmente desprovida de razoabilidade manter em suspenso o cumprimento da pena de restrição de liberdade sob a alegação de ainda restar, à defesa, pelejar em instância extraordinária – onde unicamente poderá discutir a legalidade do processo. Sim, a Suprema Corte acertou, em 2016, ao reconhecer que a presunção da inocência vigora só até a “confirmação da sentença condenatória em segundo grau”.
7. Cabe indagar: qual seria o risco de injustiça em dar-se início ao cumprimento da pena a partir da condenação em 2ª instância, quando o condenado não mais poderá esquivar-se da culpa? Que direito é fraudado, na hipótese de o condenado estar preso enquanto tramitam recursos em instância extraordinária? Nenhum! Nenhum! Ao passo que são conhecidos os efeitos deletérios da impunidade suscitada pelo “instituto da procrastinação”.
8. Em artigo publicado no ano de 2011, criticando o “regime de impunidade” que vedava a “prisão em 2ª instância” (regime surgido em 2009 por puro casuísmo, sem dizer que, até 1973, a prisão podia dar-se na 1ª instância), o ministro Cezar Peluso, então presidente do STF, declarou: “O sistema atual produz intoleráveis problemas, como a ‘eternização’ dos processos, a sobrecarga do Judiciário e a morosidade da Justiça.”
9. Assegurar, como prevê a Carta Magna, o “contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” é uma garantia à sociedade.
Contudo, absolutizar este, assim como qualquer outro princípio constitucional, desequilibra o sistema normativo e acarreta prejuízo do que é a essência de uma ordem jurídica democrática: uma justiça efetiva e apta a galvanizar a confiança da sociedade. Haverá, pois, grande dano se, para desfazer o que foi feito em 2016, for convalidada uma tortuosa exegese do texto constitucional, eis que o intuito da Carta Maior (vista como sistema normativo que perfaz uma unidade) é, em síntese, chancelar a justiça, desiderato que se torna inalcançável sem a efetividade da lei penal.
10. Saliente-se! A posição adotada pelo STF em 2016, cuja manutenção aqui se está requerendo, não interfere em nenhum dos direitos garantidos pela Constituição, como as liberdades individuais, o devido processo legal, a ampla defesa, o tratamento digno do réu. O que fica a utilização dos recursos para perpetuar processos e evitar o cumprimento das decisões.
Pelas razões ora expostas, vimos perante Vossa Excelência apelar a que, conservando a chama do judicioso espírito com que exerce a magistratura, se posicione no sentido de manter o precedente ora em vigência, rejeitando o insidioso regramento da procrastinação e da impunidade. O processo penal não pode ser uma espécie de “videogame” que, a jogadores especiais, ofereça o prêmio da prescrição.
A história recente do Supremo Tribunal Federal, que Vossa Excelência engrandece com seu magistério, é dignificada por ministros como Alvaro Ribeiro da Costa, Antônio Gonçalves de Oliveira, Antonio Carlos Lafayette Andrada e Adauto Lúcio Cardoso, que, postando-se como guardiões da ordem democrática, tiveram a coragem de enfrentar excessos autoritários do regime político de sua época. Integram eles uma galeria de vultos notáveis que, com a visão ampla do estadista que não se deixa ofuscar por aspectos periféricos – à qual souberam somar a despretensiosa simplicidade dos sábios -, ajudaram a aprimorar a ordem jurídica nacional, elevando a Constituição como um farol a orientar a nação, sem distinguir o brasileiro mais humilde do mais influente.
Pois o espírito republicano, a independência e a coragem de Vossa Excelência farão que seu nome figure no rol desses grandes luminares quando, no futuro próximo, a história desta Egrégia Corte for lembrada.
Creia! Em Vossa Excelência deposita-se a confiança de milhões de brasileiros que, com clara consciência cívica, percebem a gravidade destes tempos: nossas escolhas e nossos atos determinarão se vamos propulsar ou atrasar o futuro do Brasil.
Receba a gratidão de seus compatriotas democratas.
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br