Conheci um dia uma cidade. Não era bonita, não tinha prédios altos, não tinha “shopping”, nem asfalto nas ruas. Era apenas uma pequena cidade.
Conheci um dia uma cidade. Não era bonita, mas também não era feia. Era uma cidade cortada por um rio, onde abundavam os robalos, os acaris, os camarões, os pitus. Um rio com muitas pedras onde as lavadeiras, de cócoras, ensaboavam, “batiam” e enxaguavam as roupas das “patroas” que depois eram colocadas a secar ao tempo em varais de arame.
Um dia conheci uma cidade de construções simples. As portas e janelas das residências, normalmente geminadas, eram mantidas abertas como que a permitir ao vento entrar e percorrer os seus cômodos, arejando-os e varrendo dali as “coisas ruins”, e ao sol para que as iluminasse e aquecesse.
Naquela cidade, à noite, os adultos sentavam-se nos “passeios” de suas casas, em cadeiras de lona, para conversar e apreciar o céu estrelado, recebendo os raios de luz emanados da lua, quando esta se fazia presente.
Por costume, na “porta da rua” de cada uma das casas, pelo lado de fora, era colocado um prego onde à noite se pendurava alvíssimo saco de tecido para que nele fossem deixados tão logo o dia nascesse os pães para o café da manhã. O entregador de pães sabia a quantidade que deveria deixar em cada casa e o tipo, se “comum”, “sovado”, de leite, de milho ou doce. O pagamento, via de regra, era feito semanalmente. O mesmo procedimento ocorria com o leite. Deixava-se o litro de vidro e o leiteiro o enchia.
Na cidade de minha lembrança a violência não existia; nas portas e janelas das residências não haviam grades.
Recordo-me bem dos armazéns de secos e molhados, das “vendas” (em particular, a do “Seu” Juca) e das “bodegas” daquela cidade. Eles antecederam aos super e hipermercados, hoje tão comuns. Neles compravam-se “secos” e “molhados”. A vista ou fiado. Quando nesta última modalidade, as compras com seus valores eram anotados em uma caderneta que, diga-se de passagem, ficava em mãos do comprador. Ao receber dinheiro, o freguês ia saldar o débito – com o que o vendeiro (dono da venda) “puxava a soma” e “passava a régua” – ou “dar por conta” alguma importância, que era anotada a crédito na caderneta.
Na pequena cidade de minhas recordações, nos finais de semana, moças e rapazes reuniam-se em volta dos jardins da praça da antiga Prefeitura formando grupos alegres a conversar sentados nos bancos de cimento ou a passear pela calçada, circundando-a. Os homens em um sentido e as mulheres em sentido contrário. O colorido e o aroma agradável das flores nos canteiros davam um toque de beleza singela e singular.
Periodicamente, na mesma praça ou na praça fronteira à igreja, quermesses eram realizadas, com barracas de comidas, refrescos e refrigerantes; sorteios de brindes, serviço de som, bingos e muita alegria e desconcentração. Ali existiam dois serviços muito procurados. Eram o de telegrama e o serviço de “alto-falante”, meios utilizados para os jovens de então declararem o seu amor, mandarem mensagens de agradecimento, felicitações, pregarem “peças”, sempre de maneira pura e espontânea.
Também as festas tradicionais eram diferentes. Tinham outro brilho, outro colorido, outro encantamento. No São João, por exemplo, dançava-se quadrilha, “pulava-se” fogueira, soltavam-se fogos de artifícios. Da mesma forma, brincava-se de “pau-de-sebo”, “pau-de-fita”, “quebra-pote”, “corrida de saco”, sempre ao som da legítima música junina. As comidas eram típicas da época: comia-se pamonha, canjica, arroz doce, amendoins torrado e cozido, batata e milho assados na fogueira.
Na cidade daquela época tinha-se mais tempo e mais motivo para ser feliz.
Nas ruas, a maioria de chão batido, outras com pavimentação de paralelepípedos, as crianças com os pés “descalços” brincavam de “picula”, “chicotinho queimado”, de patinete de rolimã, de “cowboys”, jogavam bola, gude, “triângulo”, e várias outras diversões saudáveis e baratas. Os brinquedos, em sua maioria, eram feitos por elas ou por seus pais.
Quando em noite de plenilúnio, seresteiros saiam a dedilhar a viola e a cantar canções apaixonadas para as suas musas. Tudo de forma ordeira e poética. A jovem senhorita agraciada com uma serenata sentia-se lisonjeada e amada.
O lirismo na cidade que conheci na infância sempre se manifestava.
Hoje a pequena cidade cresceu. Em suas portas e janelas, grades de ferro são colocadas. Nos muros das residências, cercas elétricas são instaladas. Tudo, supostamente, em nome da segurança.
O rio, outrora piscoso, foi violentado. Poluíram as suas águas, macularam o seu leito, mataram os seus peixes. Expulsaram as lavadeiras de suas pedras. Foram mais além, violaram sua poesia.
As casas da época – construções sólidas, pintadas com cores vivas, com detalhes em seus frontispícios – cedem, cada dia mais, lugar para os prédios de apartamentos de pequenas dimensões – onde quase sempre o relacionamento com o vizinho do lado não passa, senão, de um bom-dia, boa-tarde ou boa-noite – ou de salas comerciais.
Na cidade de hoje, as famílias já não se sentam para conversar, dispostos a ouvir uns aos outros sobre o dia-a-dia de cada. Quando muito se aboletam em frente a uma televisão para assistir a programas nada educativos ou a filmes de violência
Os cartões de crédito – disseminados de forma a alcançar continuamente um número maior de usuários, muitos destes não merecedores de portá-los – de certa forma substituíram as velhas e pitorescas “cadernetas”, sempre respeitadas e honradas.
As festas tradicionais perderam o brilho, ficaram opacas. As marchinhas carnavalescas, o bom ritmo junino com suas letras simples e fáceis de cantar cairam no esquecimento. As danças de salão, tão comuns nos bailes em clubes sociais, já são lembradas como “do tempo dos meus (bis)avós”.
Calaram a voz das serestas. Quebraram as cordas dos violões. Intimidaram os cantadores. A lua cheia não desperta mais o romantismo de outrora.
As praças já não mais são povoadas nos finais de semana pela multidão de jovens em radiosa coreografia de pés em movimento, de mãos gesticulando, de sorrisos francos, de corpos viçosos.
Hoje se brinca com o computador. Brinca-se sozinho. Paga-se por hora para brincar. Os brinquedos, via de regra, são complexos e as brincadeiras mecânicas, sem sentimento.
A cidade modernizou-se. A informática conquistou o povo (principalmente os mais jovens) antes usuários dos correios e telégrafos. As cartas e telegramas são raridades cada vez menos utilizadas. Comunica-se através da internet por e-mail, MSN, Skype, entre outros.
Os anos distanciaram do nosso agora a pequena cidade da minha infância e da minha juventude. A desnudaram de sua simplicidade, de sua ingenuidade, de sua pureza. Em nome do desenvolvimento, travestiram-na de cidade grande, maquiaram o seu perfil.
Deram-lhe uma dimensão maior. Criaram escolas superiores; construíram shopping; asfaltaram suas ruas, também as iluminaram; o rio ganhou outra ponte; outras praças foram construídas, agências bancárias foram abertas. A cidade cresceu.
Também abriram as portas para a violência, para o tóxico, para o latrocínio. O preço do progresso é alto e muito das vezes incompreensível. Paga-se por tudo e por nada. Paga-se por uma tranqüilidade que não se tem, paga-se por muito que se deseja e por pouco que se consegue.
Sinto saudade daquela pequena cidade, pacata, romântica, despoluída, onde o alvorecer era uma benção e o entardecer um fascínio, uma graça divina. Onde os amigos eram irmãos e os irmãos amigos. Onde o viver era uma constante alegria e prazer.
*Frederico Marcelo Kruschewsky Almeida, Trabalhou na empresa CEPLAC, Estudou na Uesc – Universidade Estadual de Santa Cruz e Mora em Itabuna
Artigo publilcado em 29 de setembro de 2005