Cabe torcer para que os alertas aqui mostrados, não sejam agouros, mas advertências e colaborações na perspectiva do êxito que o passado avaliza a ambas as organizações.
Manoel Moacir Costa Macêdo
Manoel Malheiros Tourinho
As organizações são estruturas criadas para alcançarem objetivos específicos como partes de processos institucionais existentes no mundo contemporâneo. Elas estão presentes em qualquer sociedade e espécies de governança, sistemas, formas e regimes de governo: capitalista, socialista, monarquia, oligarquia, aristocracia, democracia, ditadura, parlamentarismo e presidencialismo. As nações têm fábricas, lojas, hospitais, quartéis, escolas, centros de pesquisa, entre outras organizações que fazem a vida existir. As organizações modernas se movem segundo os ambientes, recursos, estruturas, objetivos e processos de gestão. Não são apenas estruturas físicas, a exemplo de prédios e equipamentos, ao contrário, abrigam ativos relevantes: pessoas, visões, missões, tecnologias, história, além da integridade moral e ética.
Teorias acreditadas pela ciência permitem analisar as organizações complexas sob várias perspectivas. A mais completa procura entendê-las à luz da teoria de sistemas, compreender as organizações como um arranjo sóciotécnico: universidades e centros de pesquisa são parte dos sistemas sociotécnicos de ciência e educação, como a CEPLAC – Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira e a EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Elas não operam em circuitos fechados e imunes às influências do ambiente externo. Ao contrário, estão abertas à capilaridade entre os de fora e os de dentro. Em alguns casos essa é a essência das estruturas, das tecnologias e dos seus papéis, a exemplo das organizações de saúde em tempo de pandemia. As organizações não operam no vácuo social, mas em condições de “conflitos” de variada natureza. O reducionismo das suas funções, é um artifício, tal qual o axioma da química, as “CNTP – Condições Normais de Temperatura e Pressão” e o “Ceteris paribus” da economia, onde “tudo mais permanece constante”, exceto as herméticas variáveis em análise. Ambos são recursos metodológicos, vez que no mundo real “tudo está em movimento e tudo interfere em tudo”.
Nessa perspectiva, por exemplo, um evento no setor agropecuário brasileiro, expressivo da economia nacional, mereceu atenção. Trata-se de analisar à luz de conjunturas passadas e presentes o que impulsiona o arranjo organizacional para recuperar a cacauicultura brasileira com a criação da Unidade Mista de Pesquisa e Inovação do Cacau, corruptela atualizada do “velho convênio técnico-científico” entre CEPLAC e EMBRAPA, organizações reconhecidas mundialmente devido a eficiência e sucesso no determinado lapso temporal. A CEPLAC foi modelo de uma ação integrada de pesquisa, ensino e extensão aplicada a um produto – o cacau. A CEPLAC, foi efetiva, eficiente e primorosa, em participar na ocupação da Amazônia no período do governo militar. O maior sucesso dessa missão está no fato do estado do Pará atualmente pontuar como o maior produtor de amêndoas de cacau nacional.
A EMBRAPA por sua vez, nasceu no pragmatismo da ditadura militar, como um modelo concentrado de pesquisa lastreado majoritariamente em centros de pesquisa por produtos, lógica avessa ao modelo difuso dos institutos de investigação; entretanto sem assumir os papéis derivados do ensino e extensão, ficando a sua “raiz pivotante” em produtos relevantes das cadeias agroindustriais e uns poucos nos biomas e na alimentação nacional.
A receita da Revolução Verde, orientou os propósitos da EMBRAPA no “aumento linear da produção e produtividade das lavouras e criações”, pela entrega de específicos “pacotes tecnológicos”, apartados das identidades históricas, sociais, econômicas e ambientais dos produtores rurais e seus modos de produzir e viver. A referência era a monta das inovações incorporadas em determinados produtos agropecuários na lógica reconstruída pela “inovação induzida” dos fatores de produção intensivos em capital, independentes de externalidades negativas.
O processo de colaboração entre as duas organizações estatais sob o véu do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA, qualificam a se “amigarem”, no qual a estatal EMBRAPA ajudará a outra, a CEPLAC a fazer com eficiência o dever de casa como fez outrora, trinta anos passados. Será possível, ou será o benedito? Os objetivos são ambiciosos e transbordam a realidade das organizações isoladas em seus próprios mandatos, que passam a contrair uma cegueira às ameaças do seu entorno, ontem favorável e aplaudindo, hoje judiando e crucificando. Contingências que permeiam a EMBRAPA e a CEPLAC, a primeira ainda respirando pela sua rica história, a segunda agoniando. A Unidade Mista de Pesquisa nasce numa atmosfera de carência de recursos, restrições à aquisição de equipamentos, suspensão de treinamentos no exterior, restrições às ações de apoio aos experimentos no campo e laboratórios e até de suprimento de mão de obra especializada em decorrência de aposentadorias, mortes e defecções voluntárias. A CEPLAC tem mais de um quarto de século que não repõe seus efetivos, em menor tempo, também na EMBRAPA.
Apesar da CEPLAC e EMBRAPA terem acumulado experiências exitosas no marco temporal definido, tempo que não volta jamais, a realidade não mantém a sua histórica relevância. Apresenta-se então a pergunta: tem a ideologia neoliberal, da economia de mercado, da proposta do Estado Mínimo interesse em mantê-las vivas e pujantes? Uma resposta clara, como simples exemplo a essa premissa: na Amazônia depois do cacau ter retornado às suas origens florestais pela CEPLAC nos anos setenta, quem comanda agora a economia cacaueira, inclusive na formação de novos talentos e operários para as lides da lavoura, senão o setor privado na via do SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas e SENAR – Serviço Nacional de Aprendizagem, apostolados pelas Federações de Agricultura dos estados amazônicos produtores de cacau.
Os agentes públicos presentes na Unidade Mista de Pesquisa, apresentaram propósitos ambiciosos e desprovidos de referenciais pragmáticos à sua operabilidade sobre as pessoas, materiais, estratégias efetivas e recursos financeiros para prospectar os revelados propósitos. Para o MAPA, o objetivo é “fortalecer a cacauicultura brasileira. Incrementar a pesquisa e desenvolver novos clones, mais produtivos e resistentes às pragas. O início da retomada do Brasil como grande produtor mundial”. À EMBRAPA “identificar as principais lacunas e potenciais oportunidades para alavancar a cacauicultura nacional”. Para a CEPLAC “que o Brasil deixe de ser importador de cacau e amplie sua exportação de cacau fino, derivados e chocolate em prol da cadeia do cacau e da sociedade brasileira de forma geral”.
Nos anais da história brasileira, constam registros de organizações estatais extintas, com fartos exemplos no setor agropecuário, sem reações e contestações robustas da sociedade, até por que foram decisões legais oriundas do poder legislativo. O diagnóstico das crises, anomalias e morte das organizações, são indispensáveis para a sua sustentabilidade e governança, sobretudo as públicas. Um profundo estudo dos ciclos dos monocultivos e suas organizações fomentadoras (cacau, café, algodão e cana-de-açúcar) vindas da economia colonial, marcado pelos rastros dos baronatos, capitães, coronéis e donos da terra, do desmatamento do bioma da Mata Atlântica, ambiente inicial das ações da CEPLAC se faz necessário pensar uma nova história organizacional.
Qual o papel que ainda pode ser reservado ao Estado nessas contingências? O suposto, é de que nem mesmo a soma aritmética dos anos da CEPLAC + EMBRAPA = 112 anos serão capazes de alcançar os objetivos propostos nessa cooperação. O fundamental é compreender a real movimentação do agronegócio no país e no mundo, livres dos apanágios corporativos que terminam buscando soluções mágicas, retiradas das cartolas das grandes corporações estrangeiras, algumas mais poderosas que alguns países, na geração de emprego e renda, acumulação e modernização do mundo rural, entre outros.
As duas organizações estatais, estão em questionamentos sobre as suas inserções nas demandas do agronegócio brasileiro. A CEPLAC, no período pósConstituição Federal de 1988, mostrou os primeiros sinais de declínio, quando comparado com o seu virtuoso passado. Diríamos que está “estiolada” e “desidratada” apesar das fortes chuvas do Sul da Bahia e do Pará. Pesquisadores bem treinados, reclassificados funcionalmente como “fiscais agropecuários” podem ser vistos nas plataformas de embarque de cacau no porto de Ilhéus. A imobilidade intencional alcança trinta anos.
À EMBRAPA, os sinais de enfraquecimento não faltam e não são recentes. Nos últimos vinte anos, vem ocorrendo o contingenciamento dos seus dispêndios orçamentários e o deslocamento das demandas por resultados de pesquisa pela complexa produção agropecuária brasileira. Não é recente a desarticulação do seu programa de treinamento, a carência de aquisição de equipamentos estratégicos, os descuidos com os campos experimentais e os baixos indicadores da ciência, tecnologia e inovação, em publicações e patentes, particularmente, com as referências internacionais. “Por favor, Embrapa: acorde!”.
A sustentabilidade das organizações numa sociedade desigual estará comprometida quando algum desses fatores estiverem presentes na sua operacionalidade: gestão desconectada com a realidade, carência de cumprimento de metas robustas, baixa produtividade, afastamento progressivo da evolução do conhecimento, distanciamento das demandas locais, envelhecimento dos meios de trabalho e rendimentos incompatíveis com a unidade das “possibilidades versus as necessidades”.
Cabe torcer para que os alertas aqui mostrados, não sejam agouros, mas advertências e colaborações na perspectiva do êxito que o passado avaliza a ambas as organizações. Sem um efetivo diagnóstico organizacional para identificar as ameaças e falhas, a “boia salva-vidas” atirada ao mar para resgatar dois moribundos, não vai salvá-los. Um agonizando e o outro está deveras enfermo. Se a boia estiver furada, só resta o abraço dos afogados.
Manoel Moacir Costa Macêdo e Manoel Malheiros Tourinho são engenheiros agrônomos e, respectivamente, pesquisadores aposentados da Embrapa e da Ceplac.