MV Marcus Vinícius Furtado Coêlho*
A pandemia do novo coronavírus desafia a medicina e os sistemas de saúde ao redor do mundo, mas também a organização do Estado, da sociedade e os limites dos direitos e das liberdades constitucionalmente garantidos aos cidadãos no mundo democrático. Diversos países impuseram restrições às pessoas e às empresas com o objetivo de frear o avanço da Covid-19. Foram adotadas medidas como o fechamento de fronteiras, a proibição de aglomerações públicas, restrições para o comércio, adoção de home office e até a aplicação de multas ou abertura de investigação criminal e de processo contra pessoas que transitam nas ruas descumprindo as normas. A articulação entre os Poderes da República, vital em tempos de normalidade, é imprescindível durante uma crise de dimensões globais. É preciso enfrentar esse período de instabilidade e incertezas com respaldo na ordem constitucional e respeito aos direitos fundamentais. As restrições devem ser limitadas às estritamente necessárias e adequadas para enfrentamento da epidemia. E essa atuação das autoridades deve sempre ocorrer dentro dos limites legais e constitucionais. Do contrário, quando terminar a emergência na saúde pública, teremos que lidar com um grande prejuízo aos avanços democráticos das últimas décadas. No Brasil, as autoridades adotaram diversas medidas que têm amparo na Constituição e são necessárias para o enfrentamento da pandemia. Em fevereiro, por exemplo, o Congresso aprovou a Lei nº 13.979/2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”. A lei permite o isolamento de pessoas contaminadas, a restrição de atividades e separação de pessoas suspeitas de contaminação (quarentena), além da realização compulsória de exames médicos e outras providências. Uma portaria interministerial prevê que quem não se sujeitar às medidas pode responder pelos crimes de infração e de desobediência de medida sanitária preventiva. Outro acerto foi a aprovação do estado de calamidade pública, autorizando gastos extraordinários para conter o avanço da doença, aprovado por unanimidade pelo Congresso, em louvável gesto de maturidade política. Essas ações e normas excepcionais e adequadas à ordem constitucional vigente. Elas definem os próprios limites e transitoriedade, aplicando-se apenas aos casos ou ao período excepcional relacionado ao novo vírus. A Lei 13.979 condiciona as imposições a evidências científicas e garante aos afetados o direito de serem informados sobre seu estado de saúde, de terem assistência familiar, tratamento gratuito e pleno respeito à dignidade e às liberdades fundamentais. Outras propostas, no entanto, são flagrantemente inconstitucionais e, felizmente, não se materializaram. Esperamos que assim continue. É o caso da possibilidade de adoção do estado de sítio, que poderia restringir o ir e vir e impedir a possibilidade de reuniões. Também permitiria detenções, violação de correspondências, quebra de sigilo de comunicações, o fim da liberdade de imprensa, a busca e apreensão em domicílios, a intervenção em empresas públicas e a requisição de bens pelo Estado.O estado de sítio apenas tem lugar em situações absolutamente excepcionais, quando medidas menos danosas ao sistema de direitos e garantias individuais não surtem efeito. Ele permitiria a suspensão de garantias constitucionais e a fragilização de direitos e jamais traria resultados positivos no enfrentamento de uma crise sanitária como a enfrentada atualmente. No momento, o Estado está, sim, atuando dentro das regras democráticas, que se mostram eficientes para o objetivo em questão. Sem recorrer ao extremo, as autoridades já conseguem impor as necessárias e acertadas restrições para conter a Covid-19. O momento é de colaboração entre governos e poderes. Portanto, a resposta esperada do Estado em relação à epidemia não deve ser a ampliação de seu arsenal repressivo, mas a expansão da capacidade de assistência e de proteção social dos cidadãos, principalmente aos mais vulneráveis.
*Marcus Vinícius Furtado Coêlho é advogado, é presidente da Comissão de Estudos Constitucionais e ex-presidente nacional da OAB.
MATÉRIA PUBLI ADA NO CORREIO BRAZILIENSE(27.03.2020)