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AUGUSTO NUNES*: A BELIGERÂNCIA DOS SERTANEJOS DE TOGA

por Ornan Serapião
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Luís Roberto Barroso, ministro do STF | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

As decisões do STF não são mais ajuizadas que as fantasias dos moradores da vila de Ribeirãozinho

Cinco anos antes que se transformasse em Taquaritinga, Ribeirãozinho resolveu mostrar em 1902, com dois monumentos à fantasia, que a gente do lugarejo era ainda pouca, mas muito imaginosa, e pegava em armas sem muita conversa nem discurseiras extensas tanto para mudar o regime em vigor no país como para defender a vila em perigo. No primeiro episódio histórico, Ribeirãozinho aderiu a uma conspiração silenciosa e, no dia aprazado, os chefes da insurreição proclamaram a restauração da monarquia. Ninguém sabia direito qual dos descendentes de dom Pedro II ocuparia o trono, nem o que seria feito dos governantes locais, muito menos se algum revolucionário da cidade viraria barão, conde, duque ou visconde, mas todos cumpriram exemplarmente a missão que lhes fora confiada.

Enquanto as autoridades locais e a população festejavam na praça a queda da República ainda na primeira infância, um grupo sobraçando carabinas prendeu o delegado, outro se apropriou da estação da estrada de ferro inaugurada no ano anterior e um terceiro expropriou o telégrafo para comunicar o sucesso da insurreição, perguntar se deveriam deslocar a tropa para a capital e comemorar a chegada de informações alvissareiras sobre o andamento da insurreição em outros lugares. Depois de algumas horas, o primeiro telegrama informou que os monarquistas de Espírito Santo do Pinhal se haviam sublevado. Não chegou mais nenhum. Diante da constatação de que apenas duas cidades estavam dispostas a sepultar a República, os líderes do movimento soltaram o delegado e voltaram para casa. A monarquia durou um dia.

Compreensivelmente, Ribeirãozinho baixou o penacho durante alguns meses, até que a lira do delírio foi novamente acionada, no mesmo ano da graça de 1902, pela notícia perturbadora: dezenas de leprosos, como eram então chamados os futuros hansenianos, vinham dos lados de Araraquara em direção ao município, avançando pelos trilhos da estrada de ferro. De novo, os moradores não perderam tempo com reuniões deliberativas, trocas de ideia e outras providências de pouca valia. Enquanto mulheres e crianças se trancavam em casa, os homens rumaram para a estação de trem armados de carabinas, trabucos, garruchas, espingardas, um e outro facão de cortar cana simulando baionetas. De bruços na linha férrea, passaram a noite e a madrugada esperando a aparição do inimigo. Na manhã seguinte, descobriram que a marcha dos leprosos era boato. O que faria a numerosa milícia civil se fosse verdade? Negociariam uma retirada sem sangue ou repeliriam a ameaça de contágio na base do tiro, porrada e bomba? Como já não restavam sobreviventes quando nasci, não pude decifrar o enigma. Mas o ânimo beligerante da tropa improvisada recomenda que se crave a segunda opção. Aquilo tinha tudo para não acabar bem.

Não parecem mais ajuizados que aqueles sertanejos de Ribeirãozinho os sete homens e duas mulheres que compõem a bancada majoritária do Supremo Tribunal Federal. Pelo que andou dizendo em Lisboa o ministro Dias Toffoli, a monarquia foi oficiosamente ressuscitada no momento em que a Corte anexou ao amplo espaço que já dominava o vasto território do Poder Moderador. Pelas audácias fora da lei que vêm colecionando, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso são os braços do decano Gilmar Mendes, o déspota no trono. Os leprosos da hora agrupam as ramificações da grande tribo dos “negacionistas” — os que não tomaram vacina, os que enxergam também efeitos colaterais perigosos na imunização sem limites, os que dispensam o uso da máscara em conversas no restaurante, os que se recusam a enxergar um genocida no presidente Jair Bolsonaro e, fora o resto, os que se atrevem a criticar integrantes da nobreza de toga. “Mexeu com um, mexeu com todos”, avisou há pouco tempo Luiz Fux.

André Mendonça tem tudo para tornar-se um ótimo juiz: basta fazer o contrário do que fazem os semideuses de picadeiro

Nesta semana, a Constituição foi novamente submetida a selvagens sessões de tortura por gente que existe para preservar-lhe a integridade. Alexandre de Moraes, o Carcereiro Compulsivo, mandou um recado ao procurador-geral da República, Augusto Aras: convém concordar com os castigos impostos ao preso político Roberto Jefferson, ao exilado político Allan dos Santos, ao deputado federal Daniel Silveira e a quem mais lhe aprouver. E é bom parar de divergir das sucessivas provocações feitas por Moraes ao chefe do Poder Executivo. Por ter sugerido que Jair Bolsonaro fosse poupado de prestar depoimento à Polícia Federal, Aras foi tratado grosseiramente pelo capitão do mato togado. O chefe do Ministério Público foi intimado a enviar ao ministro, no prazo de 24 horas, o material que há na procuradoria sobre o inquérito que Moraes abriu a pedido de Omar Aziz — este sim um caso de polícia.

Barroso, depois de novas alusões a “autoridades genocidas”, decidiu que só entrariam no país portadores do passaporte vacinal. Alguém lhe soprou que, aplicada a brasileiros que viajaram para o exterior sem o documento, estaria criada a versão brasileira de um personagem que até agora existiu apenas no cinema: o exilado de aeroporto. Ao reescrever o decreto às pressas, acabou endossando quarentenas e testes que rejeitara quando propostos pelo presidente da República. A suprema semana terminou com a posse do ministro André Mendonça, que tem tudo para tornar-se um ótimo juiz: basta fazer o contrário do que fazem os semideuses de picadeiro — e qualificar publicamente de inconstitucionais as decisões inconstitucionais dos colegas. Talvez consiga injetar uma dose de coragem em Nunes Marques, a decepcionante primeira indicação de Bolsonaro.

Quando isso vai acabar?, perguntam-se milhões de brasileiros inconformados com a arrogância insolente do que é, em sua essência, um time de funcionários públicos do grupo A muito bem remunerados com o dinheiro dos impostos. Se não é fácil saber quando, não parece difícil adivinhar como. Vai acabar no momento em que a Polícia Federal se recusar a prender alguma autoridade alvejada por mais um mandado de prisão proibido pela Constituição.

*AUGUSTO NUNES é Integrante do Conselho Editorial de Oeste, foi redator-chefe da revista Veja e diretor de redação do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo, do Zero Hora e da revista Época. Atualmente, é comentarista do Jornal da Manhã e do programa Os Pingos nos Is, ambos da Rádio Jovem Pan. Também é colunista do R7 e comentarista do Jornal da Record. Apresentou durante oito anos o programa Roda Viva, da TV Cultura, e foi um dos seis jornalistas entrevistados no livro Eles Mudaram a Imprensa, organizado pela Fundação Getulio Vargas. Entre outros, escreveu os livros Minha Razão de Viver — Memórias de Samuel Wainer e A Esperança Estilhaçada — Crônica da Crise que Abalou o PT.

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