Alvo de denúncias na CPI, operadora de saúde se diz vítima de extorsão e atravessa a pior crise desde sua fundação
Por Paula Leal
“Monstruosidades de um programa de assassinatos”, “experiências pseudocientíficas”, “laboratório dos horrores”, “práticas sinistras”. Foi assim que a Prevent Senior foi retratada nos últimos meses desde que a máquina de triturar reputações da CPI da Covid mirou seus canhões na direção da operadora de saúde. Ainda no ano passado, no início da pandemia, a empresa foi parar no olho do furacão por concentrar 58% das mortes por covid-19 no Estado de São Paulo. Os hospitais da rede foram fiscalizados pela Vigilância Sanitária quatro vezes em 12 dias, e a Secretaria de Saúde de São Paulo pediu a intervenção em três hospitais porque a rede teria deixado de informar casos de infecção e mortes por coronavírus. O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta chegou a dizer que a alta taxa de óbitos seria resultado do modelo de negócios da empresa, focado em idosos, e questionou por que esse modelo de plano de saúde foi autorizado a operar no país. Além disso, a distribuição de kits de medicamentos aos pacientes da rede para combater o coronavírus também foi alvo de críticas. Esse combo de acusações desgastou a imagem da empresa, que vinha se recuperando do baque. Ao longo dos meses, o Ministério Público pediu o arquivamento das investigações por entender que não houve falhas por parte da empresa, as notícias sobre a operadora foram minguando, a pandemia deu uma trégua. A tempestade parecia ter passado. Mas o pior ainda estava por vir.
Denúncias de irregularidades e a CPI da Covid
Desde março deste ano, a Prevent Senior passou a ser acusada de uma série de crimes e irregularidades supostamente cometidos por médicos e ex-colaboradores da empresa. A lista é longa e envolve acusações como administrar “medicamentos sem comprovação científica” contra o coronavírus, manipular o resultado de um estudo para testar a eficácia da hidroxicloroquina, alterar o código de diagnóstico da covid-19 para evitar que a doença aparecesse em eventual registro de óbito, obrigar médicos a prescrever o “kit covid” sem autorização dos familiares, participar de um “gabinete paralelo” do governo federal para testar e disseminar medicações do kit covid. Mas o arsenal de denúncias ganhou mesmo projeção nacional quando um grupo de 12 médicos, ex-médicos e enfermeiros da Prevent Senior, com a ajuda da advogada Bruna Mendes Morato, elaborou um dossiê contra a empresa e o entregou à CPI da Covid.
Foi um prato cheio. Os senadores do G7, o “alto comando” da CPI, não perderam tempo e chamaram a advogada e o diretor-executivo da empresa para prestar depoimento. A versão final do relatório do senador Renan Calheiros, relator da comissão, dedicou mais de cem páginas a incriminar a operadora de saúde e a tentar relacionar a empresa com o presidente Jair Bolsonaro: “Neste capítulo, vamos tratar do tema Prevent Senior, (…) que acabou por ganhar sombria notoriedade em razão de suas ligações com o governo federal”, diz o documento de Calheiros logo no início, além de dispensar uma seção inteira para tratar do “colaboracionismo com o gabinete paralelo”. O Ministério Público abriu novas investigações na esfera civil e também criminal, liderada por uma força-tarefa composta de oito promotores. A empresa é investigada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. A Câmara de Vereadores instalou uma CPI para investigar a Prevent. A Assembleia Legislativa de São Paulo tenta há mais de um mês criar uma comissão sobre o tema, mas até agora não conseguiu emplacar.
Emparedada, a Prevent Senior terá de se defender de todas as acusações, uma a uma, e responsabilizar-se pelos erros que eventualmente cometeu. De todo modo, algumas questões precisam ser postas à mesa. Quando o vírus chinês desembarcou no Brasil, ninguém sabia nada de nada sobre a covid-19. Não havia vacinas. O uso de remédios já conhecidos no mercado para outras doenças foi (e ainda é) usado no combate ao coronavírus — é o que os especialistas chamam de reposicionamento de medicações. É simples: criar do zero um remédio com validação científica no tratamento de qualquer doença pode levar anos. Não havia esse tempo. Em condições excepcionais, recorreu-se ao que tinha disponível na prateleira. Entre corticoides, antibióticos e anticoagulantes receitados aos montes em todo o mundo, duas pílulas foram parar no banco dos réus: a cloroquina, um antimalárico usado há mais de 70 anos, comprado sem receita médica até o ano passado, e a ivermectina, um vermífugo usado para combater vermes e parasitas, dado até para crianças.
É legítimo questionar os métodos científicos para demonstrar e comprovar a eficácia dessas medicações contra a covid. O presidente do Conselho Federal de Medicina, o médico Mauro Ribeiro, disse em entrevista recente a Oeste que ainda não há estudos conclusivos para colocar uma pá de cal no assunto, nem de um lado nem de outro. No entanto, houve uma demonização dessas fórmulas sem precedentes na história da bioquímica mundial. A cloroquina apresentada pela CPI da Covid é um veneno que mata. O que dizer, então, dos médicos David Uip e Roberto Kalil Filho, dois medalhões da medicina brasileira, que tomaram a medicação ao serem diagnosticados com a covid-19? Atentaram contra a própria vida? É claro que não. A aposta na cloroquina pode não ter funcionado, mas isso não transforma médicos do Brasil e do mundo em assassinos. “Dizer que hidroxicloroquina e ivermectina matam, para quem é médico, mais parece uma piada”, afirmou Ribeiro. “E quando isso vem da boca de um médico, beira o escárnio.”
Não foi só a Prevent Senior que usou o chamado kit covid para medicar pacientes contaminados pelo coronavírus. Outros hospitais, como o Albert Einstein, o Sírio-Libanês, a Beneficência Portuguesa, e redes de saúde como a Hapvida também se socorreram da cloroquina no combate à covid. Uns abandonaram a estratégia antes do que outros. Mas nenhum médico ou rede hospitalar de boa-fé topariam dar uma medicação aos pacientes se não houvesse um mínimo de respaldo científico. Pela lógica, todo plano de saúde quer manter o cliente vivo. Afinal, qual seria o sentido de uma empresa prescrever um remédio que mata o segurado, aquele que paga mensalidades e é o responsável pelo lucro do negócio?
O modelo de negócios para idosos virou alvo de dossiê e extorsão
No mundo todo, a pandemia do coronavírus matou gente, causou sofrimento, desmantelou a economia global. Mas, sem dúvida, os idosos foram os mais castigados pela doença. De acordo com um levantamento realizado por Oeste com dados do Ministério da Saúde, desde o início da crise sanitária até 23 de outubro, cerca de 68% dos mortos por covid-19 no Brasil tinham 60 anos ou mais. Justamente o público-alvo da Prevent Senior, que tem uma carteira de cerca de 550 mil beneficiários, com idade média de 68 anos. Segundo dados da ANS, a Prevent Senior tem 76% de sua carteira de clientes composta de idosos, comparado a uma média de 14,2% do setor. A empresa conta com mais de 3 mil médicos e 12 mil funcionários e figura entre os dez maiores planos de saúde do país. As mensalidades para idosos podem variar de R$ 1 mil a R$ 2 mil.
O dossiê contra a empresa apresentado à CPI é assinado por 12 profissionais, e a identidade de boa parte deles permanece em sigilo. “Até agora, ninguém abriu quem são os 12 denunciantes. Nem sabemos se todos eles existem mesmo, só conhecemos três”, diz Fernando Parrillo, presidente e um dos fundadores da Prevent Senior. Os senadores não se interessaram em ouvir os acusadores e se contentaram com o depoimento da advogada Bruna Mendes Morato. “Em regra, o advogado acompanha o cliente, que presta depoimento sobre os fatos”, escreveu a advogada, professora de Direito Penal e deputada estadual Janaina Paschoal, em uma publicação no Twitter. “Em mais de 20 anos de advocacia, nunca vi o advogado substituir o cliente.” A Prevent diz que foi vítima de extorsão. Antes de as acusações serem levadas à comissão do Senado, Parrillo afirmou que a operadora recebeu, por intermédio da advogada, uma proposta de acordo de R$ 3,5 milhões. “Como nós não aceitamos, eles levaram adiante as denúncias”, conta.
O grupo de pessoas com 59 anos ou mais foi o que mais cresceu dentre os beneficiários dos planos de saúde
Com um modelo de negócio voltado para o público idoso, a Prevent Senior foi na contramão da concorrência. Enquanto boa parte dos planos de saúde enxergava a população idosa como de alto risco e de pouco retorno financeiro, a empresa criada em 1997 pelos irmãos Fernando e Eduardo Parrillo resolveu apostar justamente nesse grupo. A companhia oferece planos para pessoas físicas, ao contrário das operadoras convencionais, que preferem vender planos corporativos ou coletivos por adesão, que dão maior liberdade à empresa na hora da aplicação de reajustes de mensalidades. Além disso, em vez de terceirizarem o trabalho, os irmãos Parillo focaram em investir em estrutura própria, a chamada verticalização do negócio. Atualmente, a Prevent possui dez hospitais e pouco mais de 30 unidades de atendimento espalhadas pela capital paulista. O faturamento da empresa saltou de R$ 439 milhões em 2011 para R$ 1 bilhão em 2014 e mais de R$ 4 bilhões em 2020. O lucro acompanhou o crescimento, indo de R$ 33 milhões em 2011 para R$ 496 milhões no ano passado. A cada mês, a Prevent recebe em média 5 mil novos beneficiários. “Mesmo com a crise, não tivemos perdas”, garantiu Parrillo. “Os números são iguais aos de outros anos, e devemos chegar a R$ 5 bilhões de faturamento neste ano.”
Em meio às batalhas judiciais, a empresa enfrenta a maior crise de imagem desde sua fundação. No auge das denúncias, houve protestos em frente à sede e manifestantes jogaram tinta vermelha na fachada do prédio e escreveram “assassinos” na calçada. Já há casos de pacientes processando a operadora em busca de reparação por se sentirem “coagidos” a usar os remédios prescritos pelos médicos da rede durante o tratamento da covid-19. No final de setembro, a Justiça de São Paulo determinou, em decisão liminar, que a Prevent Senior pague cerca de R$ 2 milhões para um paciente da rede que fez uso do kit covid e alegou não ter recebido tratamento adequado. A decisão não é definitiva e ainda cabe recurso.
Recentemente, a Prevent assinou um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público de São Paulo (MPSP) em que se compromete a não usar mais os remédios do kit covid, entre eles a hidroxicloroquina e a ivermectina, em pacientes diagnosticados com a covid-19. O documento prevê ainda que a empresa respeite a autonomia médica, não realize “tratamentos experimentais” sem autorização de órgãos competentes e crie o cargo de ombudsman em até 90 dias, contratado e pago pela Prevent, para colher críticas ou sugestões de pacientes e colaboradores. O MPSP estuda também a cobrança de uma multa por danos morais coletivos pela administração do kit covid e pela pesquisa que teria sido feita pela operadora no início da pandemia. O advogado e especialista em Direito médico Washington Fonseca explica que a assinatura do termo não configura aceitação de culpa nem produz provas contra a empresa. “É uma oportunidade para ajustar a conduta de uma situação que o Ministério Público entende não ser adequada, mas não é um reconhecimento de culpa”, diz Fonseca. O advogado da Prevent Senior, Aristides Zacarelli Neto, disse que a anuência no documento visa a dar continuidade à política de “transparência” e “boa-fé” da empresa.
Os impactos do caso Prevent no atendimento aos idosos
A Prevent Senior terá de mostrar resiliência e respaldo financeiro para segurar o tranco. A concorrência está de olho no mercado 50+, que não para de crescer. O grupo de pessoas com 59 anos ou mais foi o que mais cresceu dentre os beneficiários dos planos de saúde nos últimos anos. Aumentou 11% de 2016 a 2021, chegando a 7,3 milhões de usuários. Enquanto isso, o número total de beneficiários de planos permanece estagnado — em 2016, eram pouco mais de 48 milhões, e o número seguiu igual em 2021, segundo a ANS. É um baita filão e algumas empresas já criaram produtos para essa faixa etária. Mesmo assim, ainda existem poucos concorrentes que ofereçam planos para idosos na mesma faixa de preços e condições da Prevent Senior, pelo menos em São Paulo. A reportagem de Oeste ligou para corretores em busca de informações sobre planos de saúde individuais para idosos na capital paulista. As opções são minguadas. Duas ou três empresas são apresentadas, entre elas a Prevent Senior. Com as denúncias na CPI e outros órgãos, surgiram dúvidas se o caso pode interferir no atendimento aos idosos no setor privado.
O presidente da Associação Nacional das Administradoras de Benefícios (Anab), Alessandro Acayaba de Toledo, defende a investigação das denúncias contra a Prevent, mas avalia que, se a questão se restringir ao kit covid, sem estender para outras práticas além do atendimento durante a pandemia, a operadora tende a ser pouco afetada em termos financeiros. “Se parar por aí, e não tiver desdobramentos com implicações maiores, não acredito que haverá uma derrocada da operadora, nem mesmo uma evasão grande de beneficiários”, diz. Para o presidente da Anab, as opções para quem passou dos 60 anos são restritas no mercado: “A Prevent é um case de sucesso. O custo-benefício que o idoso encontra dificilmente será praticado por outras operadoras”, disse Toledo.
Até mesmo o modelo de verticalização para gerenciar custos foi colocado em xeque diante das denúncias envolvendo a Prevent. Como nesse modelo a operadora e os hospitais pertencem à mesma empresa, o receio é que a economia de recursos possa se sobrepor à qualidade do serviço. Ou seja, em casos que demandam internações e serviços mais caros, a companhia pode adotar medidas para reduzir custos, comprometendo o resultado. Para Toledo, a estrutura verticalizada não é um problema. “Acho exagerado e muito precoce fazer um juízo de valor do modelo de negócio”, disse o presidente da Anab. “No limite, você pune gestores por práticas que não foram corretas em determinado momento, mas não o modelo. Qualquer que seja, verticalizado ou não, o mais importante é o desfecho do caso clínico com sucesso. É isso que vai garantir a retenção do cliente, a adesão de novos beneficiários e assim por diante.” O advogado Washington Fonseca enxerga a verticalização como vantagem competitiva, importante para manter uma gestão responsável dos custos. “A Prevent é uma empresa robusta, e, como eles oferecem um tratamento in house, eles têm maior controle sobre os custos, além de maior poder de barganha com fornecedores, o que torna a empresa mais lucrativa.”
As suspeitas contra a Prevent Senior ainda precisam ser investigadas. “Com o tempo, a verdade aparece, tem de ter paciência”, diz Parrillo. “Uma empresa de saúde não pode estar envolvida num ambiente político.” Com a ajuda da CPI da Covid e da mídia tradicional, que encabeçaram um linchamento contumaz contra a operadora, o tema se politizou e ultrapassou as fronteiras do conhecimento científico. No entanto, uma coisa é certa: não há como condenar as ações da Prevent com as lentes do presente sem considerar o contexto de incertezas do início da pandemia que atormentava (e ainda atormenta) a ciência. Deixar ao léu milhares de clientes idosos sem acesso a um atendimento a preços praticáveis seria um desfecho trágico para o caso.
Artigo publicado originalmente na revista oeste em 05.11.2021