Vagabundagem e marinhagem de Jorge Amado

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Cyro de Mattos

Uma das qualidades de Jorge Amado é ter assumido ao longo da construção do seu legado um comportamento identitário que o põe em íntima relação com o patrimônio cultural à margem dos meios controlados pela inteligência elitista. Para ele importa como motivação às suas criações o que emerge das camadas populares, seus costumes e valores porque sabe ser impossível pensar em cultura com fundamentos apenas no que é estabelecido pelas camadas da condição social superior. Esta é uma de suas grandezas, do homem e escritor.

Em Quincas Berro D’Água (1961), Jorge Amado se propõe a desvendar o mistério que envolve o falecimento de Joaquim Soares da Cunha, apelidado de Quincas. Funcionário público exemplar, nas relações de família é oprimido pela sogra e pela mulher. Resolve deixar a condição respeitável do lar burguês pela vida boemia, ligando-se ao jogo, vagabundos e prostitutas. Conhecido como um bêbado e vagabundo, sua alcunha de Quincas Berro Dágua aconteceu depois que emborcou o copo de cachaça e, contente, soltou enorme gargalhada, que ecoou da Bahia até o infinito. Ao ser encontrado morto foi chorado pelos amigos de farras e malandragens. Começa daí o impasse: a família quer enterrá-lo segundo as normas de respeito e decência indicativas da vida antiga do funcionário exemplar, mas é impedida pelos amigos do falecido. Curió, o negro Pastinha, Cabo Martinho e Pé-de-Vento levam o falecido em ritual de bebedeira e vadiagem pelas ruas da cidade. Terminado o último lance do ritual, entre brigas e bebedeiras, num ambiente misto de ficção e realidade, com cenas ao nível do melhor realismo mágico, o anti-herói morre pela segunda vez. Atira-se ao mar como um velho marinheiro, salvo e são em definitivo das correções familiares e das injunções dos amigos.

Em Os Velhos Marinheiros ou o capitão de longo curso ocorre o dilema se foi Vasco Moscoso de Aragão um intrépido navegador ou um grande mentiroso. Essas personalidades antagônicas do anti-herói são visíveis nos episódios em que se desdobra o enredo e que se confrontam na última parte quando o navio do capitão é o único a resistir a um tremendo vendaval.

Com Os velhos marinheiros, Jorge Amado conta a história misteriosa de Vasco Moscoso de Aragão, navegador de longo curso. Segue o modelo da novela picaresca, que utiliza a biografia de uma pessoa simples para através da trapaça alcançar o posto alto. Para desvendar a história de Vasco Moscoso de Aragão, o narrador personagem pretende escrever um livro e participar do concurso literário-histórico promovido pelo Arquivo Público de Salvador.

Vasco Moscoso de Aragão desembarca em Periperi, litoral baiano, com sua farda de marinheiro, seus mapas, o cachimbo e o telescópio, roupagem e instrumentos que logo irão se tornar atrações na pequena cidade. Além dos instrumentos náuticos que fascinam as gentes, a população local se deixa seduzir também pelas histórias fascinantes contadas pelo capitão de longo curso.

Bazófia ou verdade, as histórias dão notícia de países e portos distantes, fatos admiráveis, aventuras incríveis cortadas por tempestades e enfrentamento de tubarões, naufrágios em ilhas remotas, amores espetaculares, trágicos e voluptuosos.

Nesta narrativa contada em tom de histórias de marinheiro, Jorge Amado apresenta um quadro de costumes da sociedade baiana do começo do século XX. Ali, na pacata localidade litorânea, convive a elite formada por doutores ilustres, ricos comerciantes, senhoras de respeito, aposentados, funcionários públicos e desocupados. À vida regrada e repetitiva no cotidiano se opõe o mundo aventuroso dos marinheiros, que exige conhecimento e audácia para enfrentar o perigo que Deus ao mar deu.

Nos momentos cruciais em que não se distinguem o que é realidade e o que é sonho, fantasia e verdade, sob o conflito do que aconteceu com episódios inacreditáveis. Diante da beleza fantástica do que é descrito, que prende os olhos espantados do leitor com as surpresas tantas e os sustos esplêndidos, que impressionam a cada trecho transmitido.

# Artigo do escritor Cyro de Mattos. Ficcionista e poeta, também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Uesc.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal A Região, em 16.10.21, na coluna Cyro de Mattos