A partir da superfície dos acontecimentos – da ponta exposta dos “icebergs” –, há que se penetrar no âmago da realidade subjacente e alçar a gigantesca montanha de múltiplas determinações que constituem a complexa composição do concreto submerso.
Às vezes, a aparência esconde ou distorce a essência dos fatos, desviando-lhe o foco e a atenção. Outras, ao contrário, sinaliza e taquigrafa o seu significado mais profundo, servindo como “ponta do novelo” à diligente linha de observação. Este é o desafio de toda análise que busca a conexão de sentido entre as coisas, em bases empíricas evidentes.
A dita “CPI da COVID”, ora em fase terminal de sua suspeitosa e longa trajetória, é um exemplo dessa premissa.
Pois ela não representa (ou expressa) apenas o “circo de horrores” (descortesias, abusos de autoridade, ilegalidades) performados por seus ignóbeis protagonistas de plantão, conquanto expõe, em tempo real, perante toda a sociedade brasileira – e sem disfarces(!) –, a própria natureza degenerada e putrefata do sistema político vigente – na sua totalidade.
Não se pode ignorar que as digitais da “CPI do Circo” são as mesmas do Senado Federal (que a constituiu), do Congresso Nacional (que a acolheu) e do STF (que a determinou).
Exibe e ostenta, dessa feita, semelhante caráter e idêntica genética de suas correspondentes e sobrepostas instâncias hierárquicas – dessas sendo, tão somente, uma heurística e típica amostragem.
Em todo o seu fulgor e sem-vergonhice, eis que a cleptocracia dominante resplandece, exemplarmente, nas figuras corrompidas e abjetas dos destacados dirigentes da citada CPI, os senadores Omar Aziz (presidente) e Renan Calheiros (relator) – ambos réus em célebres e volumosos “prontuários” em tramitação nas Cortes Superiores de Justiça –, tanto quanto nas dos demais consortes da encenação, todos escolhidos a dedo para representarem, no picadeiro do deboche e das vaidades, tal execrável (e desmoralizada) pantomima.
É o crime institucionalizado, por meio de seus perniciosos agentes, que se apresenta, ao vivo e a cores, na condução dos “trabalhos” da CPI, movido por seus indisfarçáveis e facciosos propósitos; julgando, sem moral, cidadãos íntegros e honestos; imputando, injusta e impunemente, delitos inexistentes a seletivos “convidados”; assassinando biografias, honras e reputações; e agredindo, arbitrária e acintosamente, direitos e liberdades fundamentais – com a agravante conivência dos meios de comunicação de massa, o apoio fascistóide de “agências de checagem” e o silêncio cúmplice e ensurdecedor de entidades como OAB, ABI, CNBB e outras congêneres (outrora defensoras dos direitos humanos e dos assentidos princípios civilizatórios universais).
Mais grave ainda, na moldura desse terrífico e vergonhoso quadro, é que as corriqueiras ações criminosas não raramente são secundadas e lastreadas justo por quem deveria desempenhar, por dever de ofício (e antes de todos!), o permanente contrapeso republicano ao arbítrio, a defesa intransigente do estado de direito e o zelo implacável pela efetuação máxima da justiça: o Supremo Tribunal Federal – hoje, paradoxalmente, transformado em escritório advocatício “oficial” da delinquência e algoz inclemente e indecoroso da “Constituição Cidadã”.
Sim, o Brasil, de ponta-cabeça, encontra-se absolutamente capturado pelas mãos de impostores e pilantras que, definitivamente desmascarados, já não ligam para a repercussão de suas ostensivas transgressões, muito menos para as proporcionais e expectadas ameaças de punição previstas em lei – que nunca se consumam perante uma (in)Justiça conluiada.
Predomina o império da barbárie, da plena desfaçatez dos poderosos, do supremo escárnio e achaque, em processo progressivo de assentamento e consolidação – a tratar o sentimento popular e a vontade majoritária da sociedade com o máximo desdém e repugnante e iniludível cinismo.
O simbolismo espetaculoso da cafajeste armação montada pela CPI da Pandemia é um retrato fiel, em quinta dimensão, da putrefação do atual sistema político brasileiro – e da totalitária e revoltante impunidade reinante, previamente concertada nos ignotos esgotos secretos do anojoso “mecanismo”, entre todas as suas mais ilustres e repugnantes “ratazanas”.
É o crime organizado (os novos “donos do poder”), infiltrado no Congresso Nacional e no STF, quem manda no pedaço – ao qual não restaram, ao que tudo indica, outras instituições de contrapeso a coibir, de fato e em definitivo, os seus devastadores abusos meliantes: seja a Presidência da República (resignada a “piruetas” e cativa em sua notória e flagrante atonia), sejam as Forças Armadas (cada vez mais desmoralizadas em sua insípida e inócua pusilanimidade).
Este é o confiscado (e prostrado) país, enfim, que emerge das profundezas submersas de suas entranhas à superfície mais visível – e ilustrativa – da reveladora CPI, aí atonados os seus principais dramas, as suas arraigadas idiossincrasias e, sobretudo, o seu inexorável e angustiante naufrágio civilizatório – ante a ausência de timoneiros capacitados e à altura de tão desafiadora e turbulenta travessia.
Alex Fiúza de Melo. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
Matéria publicada originalmente no JCO (05.10.2021)