Milhares de afegãos tentam fugir, enquanto o Talibã, em estratégia de propaganda, procura se mostrar moderado para assegurar o controle do país. O fracasso histórico da ocupação americana vai assombrar a gestão de Joe Biden até o final
Conhecido como o “túmulo dos impérios”, o Afeganistão sempre foi um país cruel para os invasores. O Reino Unido e a União Soviética saíram derrotados de lá no século XX e coube aos Estados Unidos, nesse século, compartilhar esse destino. E isso se deu de forma trágica e espetacular: com uma retirada caótica após o colapso do governo aliado e o avanço implacável do grupo fundamentalista Talibã. As cenas de desespero no Aeroporto de Cabul na segunda-feira, 16, quando milhares de afegãos tentaram entrar nos aviões C-17 americanos, deverão marcar 2021. Políticos no Ocidente já usam a expressão Saigon 2.0, comparando a queda de Cabul à conquista da então capital do Vietnã em 1975. Na quarta-feira 18, os EUA ainda enviavam soldados às pressas para tentar conter a multidão que tentava escapar por via aérea.
Mais de 40 anos separam os eventos do Vietnã e do Afeganistão, e o momento histórico é diferente, pois a Guerra Fria foi vencida nos anos 1980 pelos americanos e o terror da Al Qaeda e outros grupos é infinitamente menor do que demonstravam quando as Torres Gêmeas viraram alvo. Mas existem semelhanças. Quando Saigon caiu nos anos 1970, os EUA fizeram um esforço gigantesco para retirar 975 americanos e 1.200 vietnamitas da embaixada americana apenas com helicópteros, na operação “Vento frequente”, após sucumbir ao poder bélico superior da guerrilha comunista, abastecida pelos soviéticos. A queda de Cabul resultou de uma retirada dramática e desastrada após uma desocupação mal calculada, consequência de erros óbvios no trabalho de inteligência. O resultado foi evidenciado no aeroporto da capital afegã, com milhares de pessoas invadindo as pistas — duas morreram após cair do trem de pouso de um C-17, que decolava rumo ao Ocidente. A conquista de Cabul pode ser explicada pelo colapso do Exército apoiado pelos EUA e pelo reconhecimento da derrota por parte da população, já que a retirada havia sido pactuada desde fevereiro de 2020 entre Donald Trump e o Talibã. Enquanto a capital era invadida no domingo, 15, mais de 900 soldados afegãos atravessavam a fronteira do Uzbequistão. O presidente afegão Ashraf Ghani também fugiu, levando a mulher, o chefe de gabinete, um assessor e malas de dinheiro.
Armados, os combatentes do Talibã ocuparam o palácio presidencial sem resistência e, num primeiro momento, tentaram demonstrar moderação para evitar reações internacionais e garantir a plena ocupação. Além de proclamar uma anistia geral, o grupo declarou que as mulheres afegãs terão acesso à instrução, poderão trabalhar e não precisam usar a burca, precisando apenas seguir as leis islâmicas. A ofensiva de marketing do Talibã procurou afastar as imagens tenebrosas que são a sua marca registrada: matanças, mutilações e sequestros, como os vistos nos anos 1990. Para esse esforço, ocorreu até a visita do chefe de mídia dos guerrilheiros à sede de uma TV local, onde conversou com uma apresentadora – o grupo nunca havia dado entrevistas a mulheres afegãs. Mas, num prenúncio do que se deve esperar, combatentes dispararam contra uma multidão que protestava contra o novo regime em Jalalabad, matando três pessoas. Segundo a ONU, 180 civis foram assassinados em Kandahar, Herat e Kunduz quando essas cidades foram capturadas. Um fator que ajudou o Talibã a voltar ao poder são os chamados “senhores da guerra”, que detêm o controle das províncias do norte. Eles são apontados, ao lado do próprio Talibã, como produtores de opiáceos e heroína. Essa é a verdadeira fonte de dinheiro e poder dos novos governantes do país: o Afeganistão é o maior fornecedor de heroína para o tráfico de drogas na Ásia e na Europa.
Saigon 2.0
“Êxodo caótico no Aeroporto de Cabul. Se isto não é uma Saigon 2.0, eu não sei o que é”, escreveu o parlamentar britânico Tobias Ellwood. O secretário de Estado americano, Antony Blinken, tentou negar as evidentes semelhanças entre as retiradas do Afeganistão e Saigon. “Isto é diferente do Vietnã. Viemos ao Afeganistão há 20 anos com uma missão e ela foi cumprida: levar à Justiça os acusados de fazer os atentados de 11 de setembro.” O pronunciamento do presidente Joe Biden, na segunda-feira 16, foi uma tentativa de conter os óbvios danos à sua gestão. Foi um gesto inesperado, diz Alexandre Moreli, professor de História Contemporânea na USP. “Biden fez o pronunciamento como uma reação às acusações dos republicanos e às imagens da capital afegã. Mas é importante lembrar que o acordo para a saída dos americanos foi feito por Trump”, observa. Além disso, é incerto o destino do novo governo. Joaquim Racy, professor de Política Internacional na PUC-SP e no Mackenzie, lembra que o Afeganistão é formado por quatro grupos étnicos e linguísticos diferentes (pashtum, uzbeque, tadjique e hazara). Não existe um fator que unifique a todos, nem mesmo o Islã, já que os hazaras são muçulmanos xiitas e os outros são sunitas.
O cientista político André Lajst diz que queda do governo afegão apoiado pela Otan evidenciou que a elite política afegã é “corrupta e muito diversificada”, como disse Biden. “O tempo dirá se o Afeganistão será um Estado pária”, diz. De fato, o Talibã poderá fazer um governo que respeite os cidadãos ou mergulhar na barbárie. Já o presidente americano carregará até o final do mandato o ônus de ter encerrado de forma vergonhosa uma guerra que os EUA já sabiam há duas décadas que não poderiam ganhar. (ISTOÉ)