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DIREITO ELEITORAL: Art. 23 da LC 64/90: as “provas robustas” no julgamento das candidaturas laranjas

por Ornan Serapião
15 minutos para ler

i) O art. 23 da LC nº 64/90 e sua crítica a partir do Novo Código de Processo Civil
Talvez o leitor já tenha ouvido falar do art. 23 da Lei Complementar 64/90. Arbitrário. Autoritário. Antidemocrático. Contraditório. Inconciliável com o NCPC. “Supertrunfo”. Inconstitucional. Os adjetivos que o acompanham nas discussões jurídicas alertam sobre o terreno em que pisa o eleitoralista quando trata dos poderes instrutórios nas ações eleitorais de cassação de mandato. Neste breve artigo, adicionamos uma característica ao dispositivo: supérfluo.

Se a doutrina teme que ele seja um overpower judicial, a prática mostra o contrário nas ações de cassação de mandato por candidaturas “laranja”. Há uma relutância no uso dos superpoderes. Para estas ações exige-se uma prova robusta, não raramente demandando elementos de dolo subjetivo cuja demonstração é francamente impossível. O art. 23 torna-se um poder dispensável, sobejo, supérfluo.

Mesmo antes do projeto do NCPC e a discussão sobre o “livre” convencimento do juiz, a constitucionalidade das expressões “públicos e notórios dos indícios e presunções” e “atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes” já era questionada perante o Supremo Tribunal Federal.

Em 1994, o Partido Socialista Brasileiro alegava na ADI 1.082 que as passagens destacadas do art. 23 da LC nº 64/90 eram inconstitucionais por contrariarem: os arts. 93, IX, e 95, parágrafo único da CRFB/88 (“os dispositivos atacados acabam por conferir poderes ilimitados ao magistrado eleitoral, autorizando-o a julgar o processo com base em provas dele não constantes”); e os princípios constitucionais da segurança jurídica (“as partes poderiam ser surpreendidas”), do contraditório, da ampla defesa e do acesso à ordem jurídica justa.

O julgamento veio em 2014, confirmando a constitucionalidade da norma1.

Em voto, o min. Marco Aurélio afirmou que “[a]s partes continuam a ter a função precípua de propor os elementos indispensáveis à instrução do processo”, mas no caso da lide eleitoral haveria interesses indisponíveis, de ordem pública, viabilizando ao juiz suprir a deficiência da instrução, quando indispensável “para a formação da convicção necessária ao julgamento do mérito”.

Nesses vinte anos, porém, a doutrina produziu — e ainda produz — vários questionamentos quanto ao conteúdo do dispositivo processual-eleitoral.

Em consonância com a interpretação autêntica conferida pelo tribunal constitucional, Castro afirma o ambiente em que as provas eleitorais são produzidas é levado em conta pelo legislador, uma vez que “o processo eleitoral viciado pelo abuso de poder é muito mais sentido e percebido do que traduzido em provas”. Haveria um “pacto de silêncio” entre os envolvidos nos ilícitos eleitorais, a exemplo dos casos de corrupção ativa e passiva. O julgador é chamado a zelar pelo interesse público, não podendo ser conivente ao ilícito e desprezando o que “sente” a pretexto de que “o que não está nos autos não está no mundo”2.

O leitor de Lenio Streck já deve ter antecipado a crítica que o jurista faria. E ele fez.

Chamando-o de “um dos monumentos antidemocráticos a desafiar a nossa inteligência”, argumentou que art. 23 é, a um só tempo, contraditório, autoritário, as “presunções” são próprias do juiz, e o conceito de “interesse público de lisura eleitoral” é “vago, impreciso, capaz de albergar os mais diversos designativos”. Em análise da constitucionalidade, Streck argumentou3 que o art. 23, posto que formalmente redigido em lei complementar, é materialmente um dispositivo de lei ordinária (por seu conteúdo não estar explicitamente reservado no mandamento constitucional — art. 14º, §9 da CF — que deu origem à Lei Complementar); e como tal estaria revogado pelo Novo CPC. A regra eleitoral colide diretamente com a primeira parte do art. 371 do NCPC, que dispõe: “O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.” Ou seja, o NCPC restringe o arcabouço instrutório à apresentação de provas — não reconhecendo a pertinência das presunções e indícios.

Dessa forma, o novo código prevaleceria sobre a Lei Complementar, derrogando o art. 23.

O processualista atento poderia rebater com uma possível equiparação do dispositivo eleitoral com o art. 375 do NCPC4. Todavia, o art. 23 da LC 64/90 vai muito além das “regras de experiência”, ao conceder ao juiz os instrumentos dos “indícios” e “presunções”, que não estão albergados em parte alguma da processualística civil atual.

Em estudo sobre o tema5, João Andrade Neto aponta que o art. 23 parte da mesma premissa epistemológica equivocada. Supõe-se uma verdade a ser desvelada no curso do processo, cuja apuração depende tão somente da melhor indicação das partes, uma verdade externa e cognoscível mediante os esforços em demonstrá-la. O perigo aí é evidente: o enviesamento de uma pré-cognição do juiz pode servir-se do amparo das provas para se confirmar. É o paradigma oposto do sistema discursivo de valoração da prova — que concebe o processo como um espaço de refutação, não de confirmação do juízo prévio do julgador.

Foi justamente esta a proposta de um sistema discursivo de valoração da prova que sinalizava o novo Código ao abandonar a expressão “livremente” de seu art. 131. Abandonava, com isso, o sistema conhecido pela doutrina como “livre conhecimento motivado” ou “persuasão racional”, em que o magistrado atribuía o valor que julgava devido a cada prova. No sistema discursivo a valoração persiste, mas reduz-se o campo de discricionariedade uma vez que o juiz está incumbido de motivar esta valoração. O magistrado acolhe ou dispensa o elemento probatório, mas deve justificar esta escolha de uma forma intersubjetivamente sustentável.

E o que há do sistema discursivo de valoração na LC64/90? Aparentemente, nada. Eis o conflito dos dois sistemas. Até aqui, todas as críticas feitas ao art. 23 respaldam a conclusão de que seu conteúdo é inconciliável com o novo Código de Processo Civil e, em algum grau, também inconciliável com os direitos fundamentais.

De fato, parece haver algum consenso na doutrina a este respeito. Apresentamos um ponto de vista que, sem divergir das posições apresentadas, traz um caveat à teoria quando constatada a postura dos Tribunais nos julgamentos das fraudes de gênero.

ii) A não-aplicação do art. 23 em julgamentos de fraude da cota feminina
No fim das eleições de 2020, a página de Resultados do TSE possibilitava uma checagem da votação de todos os candidatos e candidatas do país. Sem surpresa, era possível encontrar candidatas com votação pífia ou zerada em muitas cidades.

As ações que tivemos a oportunidade de postular possibilitaram construir um ambiente de variáveis controladas propício à análise hermenêutica dos julgamentos em fraudes de gênero similares. Esperamos concluir um estudo comparativo das decisões em diferentes instâncias quando todas elas transitarem em julgado. Por ora, os resultados parciais obtidos já nos permitem antever a não-aplicação do art. 23. Mesmo quando fatos e circunstâncias indicativos da fraude sobejam no curso do processo, as decisões são no sentido da insuficiência de provas.

Adotamos um critério mínimo para a postulação das ações: deveria haver uma votação pífia (arbitramos de 1 a 4 votos) ou zerada da candidata, sem que houvesse um candidato com o mesmo resultado; ausência de recursos próprios investidos e ausência de repasses financeiros específicos; e ausência de propaganda eleitoral em material impresso e nas redes sociais6.

As dentenças variaram. Houve sucesso em pedidos de suspensão liminar da posse e, em ações similares, o indeferimento por ausência de provas. Em nenhum dos casos, porém, a fundamentação invocou o art. 23.

Nos tribunais, a tônica das decisões tem sido pela ausência de um conjunto “robusto” de provas. Há aí, ao que nos parece, um equívoco. Se consideradas como a demonstração do que se alega, as provas eram inatacáveis no tocante a quantidade de votos (comprovável mediante a consulta ao próprio TSE) e a ausência de movimentação financeira (atestada por meio da prestação de contas das candidatas). Ainda assim, persiste a demanda por uma demonstração da fraude, ignorando os fatos e circunstâncias e a possibilidade de uso do ferramental epistemológico da presunção e dos indícios.

O TSE, na ocasião do julgamento do Respe 0602016-38 (Pedro Laurentino — PI) iniciou o debate sobre as provas suficientes para configuração da fraude na cota de gênero. Foi destacado pelo eminente min. Tarcisio Vieira, relator, que “Não bastam apenas indícios; são necessárias provas objetivas e robustas aptas a configurar a fraude”. 24. O leading case viria em 2019, na oportunidade do julgamento do Respe 19.392 (Valença — PI), que contou com a decisão (polêmica) de cassação e declaração de inelegibilidade de toda a chapa proporcional.

Caso semelhante se deu no município de Cafelândia-SP (Respe 40.989), no qual houve também a cassação de todos os candidatos, nesse caso amparando-se em oitivas das próprias candidatas em Procedimento Preparatório Eleitoral – PPE, ou seja, antes do processo eleitoral propriamente dito. Tema para outro debate.

De todo modo, nenhuma menção é feita sobre os poderes instrutórios viabilizados pelo art. 23.

iii) Um ponto de vista ôntico sobre as provas
A processualística civil não pode ser incorporada ao sistema eleitoral sem que se leve em conta o ambiente não-privatístico das eleições. Ou seja, o que é justificado no âmbito civil — em que as partes buscam a pacificação de um conflito privado —, não necessariamente respalda uma teoria da prova no ambiente público das eleições.

Reconhecer essa peculiaridade é um ônus argumentativo menor do que necessidade de justificar a utilização do art. 23 por meio da primazia do interesse público como elemento justificador de qualquer atitude do juiz eleitoral, ou ainda recorrer aos mandamentos de moralidade e normalidade das eleições. O que a doutrina parece ignorar é o aspecto ôntico das provas eleitorais, ou seja, a situação fática das eleições como diversa dos conflitos pensados abstratamente pelo legislador ao elaborar o Código de Processo Civil.

Os casos em que o artigo 23 é demandado são aqueles em que a prova não é nem óbvia, nem impossível. Trata-se da prova de difícil obtenção pelas partes. Temos um cenário no qual as partes não são capazes de trazer “provas robustas” aos autos, prevalecendo a percepção sobre os “fatos e circunstâncias”, um cenário em que é exigido do juiz que recorra à “presunção e aos indícios”. Se os advogados ou o representante do Ministério Público, em seus melhores esforços, falharam em obter o probatício suficiente, é razoável supor que os elementos nesse caso não são acessíveis. Ignorar as dificuldades inerentes a análise ôntica das provas é transformar o debate numa disputa meramente teórica: uns vão argumentar pela via axiológica do interesse público, outros pela melhor epistemologia do juízo.

O problema do art. 23 reclama uma teoria processual que leve em conta, ao menos, o trabalho concreto de busca de provas sobre ilícito eleitoral. O caso das fraudes de gênero representa bem os “fatos e circunstâncias” que devem ser considerados. Há uma relação de mutualismo (seja amistoso ou coercitivo) entre o partido e a candidata “laranja”. A questão sociológica de fundo abriria um leque de investigação melhor analisado pelo prisma feminista. Como não podemos senão sinalizar sobre esta necessária discussão nos limitamos a aderir ao pensamento que postula uma estrutura patriarcal que reforça o papel secundário da mulher nas relações de poder. Não faltam também dados estatísticos que demonstram a dificuldade da mulher em obter o mandato representativo correspondente à abrangência de sua inserção na sociedade. Os “fatos e circunstâncias” estão bem apresentados. Por que a relutância em os admitir? Em outras palavras, o timing de aplicação do famigerado art. 23 é agora. Mas quando ele finalmente poderia passar de vilão à herói, num plot twist de sua função normativa, há o recuo dos tribunais.

iv) Conclusão
Pensemos o art.23 da LC 64/90 como um anti-herói.

As críticas sobre sua inconciliável posição frente ao Novo Código Civil se mantêm. Mas também sua inesperada virtude de servir como instrumento a uma interpretação viva das provas nas ações de cassação por fraude à cota de gênero, viabilizador do olhar sobre “fatos e circunstâncias” históricos e sociais.

Pensemos, ainda, a aplicação do art. 23 — e do processo eleitoral tout court — como um caminho racional em direção a um desenlace jurídico legítimo, baseado numa base comum de experiências concretas e históricas. Isso significa não retroceder a um superpoder perigoso aos valores democráticos e também, no extremo oposto, impede o dispositivo de tornar-se supérfluo.

Dando um passo além na concretização de uma teoria da justiça processual, o jurista alemão Arthur Kaufmann afirma que esta não pode ser o objetivo apenas de uma filosofia do direito, mas uma tarefa individual (pessoal) a “todos aqueles a quem está confiado o direito”. Exige-se, portanto, que a aplicação normativa do art. 23 seja uma tarefa individual e uma responsabilidade condizente com o momento histórico.

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