Com alguns anos de atraso, um movimento feminista organizado e robusto surgiu na Venezuela. Depois do #MeToo norte-americano, do #NiUnaMenos e tantos outros na América Latina. E, como toda organização que defende, em meio à ditadura de Nicolás Maduro, direitos civis e humanos, enfrenta imensas dificuldades. Uma delas vem de parte da própria oposição ao regime. Há, entre os mais engajados, os que questionam como é possível que, ante a tamanha crise humanitária, fome, escassez de remédios e pandemia, as feministas agora queiram levantar a voz e pedir respeito a seus direitos como uma prioridade? Pois é, dá até preguiça de explicar. Mas, por fim, a união de várias delas tem falado mais alto, mostrando que, especialmente por conta da crise humanitária, lutar pelas causas de gênero é tão necessário como pedir eleições livres. O movimento venezuelano se chama “YoTeCreo” e, ainda que tenha realizado alguns eventos presenciais, ganhou sua principal força nas redes sociais. Primeiro, porque estamos numa pandemia. Segundo, porque os abusos contra as mulheres venezuelanas agora ocorrem em vários países, desde que a diáspora começou. Hoje são quase 6 milhões de venezuelanos (ONU) que migraram, e muitos deles estão vivendo em países da região. Em alguns casos, tanto predador como vítima são imigrantes, e o abuso ocorre fora da Venezuela. Como ocorreu com o escritor venezuelano Willy McKey, acusado de abuso por várias mulheres. Depois de admitir a veracidade das acusações contra ele, McKey acabou matando-se, saltando do nono andar de um prédio em Buenos Aires. O caso levantou polêmica dentro e fora da Venezuela, com acusações de seus amigos de que as mulheres o haviam levado a suicidar-se. O “YoTeCreo” surgiu com força na Venezuela em 19 de abril, quando um grupo de mulheres começou a postar experiências de abusos sexuais por parte de amigos, familiares ou figuras públicas. Foi como uma avalanche, e logo as denúncias já eram milhares. As principais plataformas são o Instagram e o Twitter. Assim como no trágico caso de McKey, há várias denúncias contra artistas, como o músico Alejandro Soto, da banda Los Colores, ou Tony Maestracci, da Tomates Fritos. A maioria dos casos, porém, indica abusos vindos de distintos lados, e centenas apontam a companheiros, familiares ou amigos próximos. Há líderes do movimento em Caracas e na Cidade do México que agora enfrentam o desafio. Deixar que as redes sejam o tribunal das denúncias? Não parece ser uma boa ideia. E o caso de McKey é exemplar. Se em vez de ser torpedeado pela internet, fosse levado à Justiça, não estaria morto, mas pagando por seus crimes como se deve, enfrentando um tribunal e, eventualmente, sendo condenado. O dilema é, a que instituição levar as denúncias? As feministas do “YoTeCreo” baseadas em Caracas têm visões contraditórias. Há as que acreditam que vale levar os casos para a Justiça do regime chavista, mesmo sabendo de sua inoperância, da falta de credibilidade desta instituição e do fato de que muitas delegacias tratam mal as mulheres e menosprezam casos de violência de gênero. Outras, creem que os casos devem ser ecoados na internet apenas, exercendo pressão pelo “cancelamento” do agressor. A atriz Grecia Augusta Rodríguez, por exemplo, levou uma acusação ao Ministério Público, e instou, vias redes sociais, que as demais façam o mesmo e que pressionem as autoridades. Há as que creem que é a estratégia correta, outras que já não creem na possibilidade de ter uma resposta de um Estado falido, que sequer tem dado atenção ao colapso sanitário do país ante a pandemia do coronavírus. Das próprias redes, surgiram outras propostas. Por exemplo, um grupo de venezuelanas que está no México vem recopilando casos, por ora locais, ocorridos com vítimas venezuelanas, para levar a autoridades mexicanas, e estimulando que isso também seja feito nos outros países em que as venezuelanas estejam. É um paliativo, não resolve a questão de gênero na Venezuela, mas começa a mover as peças do jogo e a dar força a essas vozes. Levantamentos de ONGs locais venezuelanas dão conta de que de cada 10 delitos contra mulheres denunciados às autoridades, nove ficam impunes. Desde 2015, o regime deixou de publicar cifras oficiais sobre a violência contra a mulher no país. Segundo ONGs, em 2019, houve 167 feminicídios. Em 2020, 256. O salto entre um ano e outro é de mais de 50%, e mostra como as medidas de quarentena incrementaram os casos de violência doméstica. Entre as agressões contra as mulheres venezuelanas estão, também, a falta de acesso à saúde e ao acompanhamento da gravidez. Uma legislação sobre o aborto sequer é pauta de debate na nova Assembleia Nacional, controlada pelo chavismo. A oposição à ditadura abraça as causas feministas. Porém, se mal tem conseguido jogar nesse campo inclinado com a ditadura pela realização de eleições livres, os opositores acabam deixando as causas de gênero num perigoso limbo, onde as mulheres continuam sendo vítimas de mais abusos. As mulheres se cansaram, e a hashtag #YoTeCreo está no ar. As mulheres estão saindo da letargia causada pela grave crise do país e organizando-se em torno de suas bandeiras. Porque, ainda que outros digam que não são a prioridade neste momento, elas sabem que sim, o são. (Folhapress e BN)
INTERNACIONAL: Feministas venezuelanas sacodem redes sociais e pedem mudanças reais
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