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OPINIÃO DO ESTADÃO – A neutralidade da rede em perigo

por Ornan Serapião
4 minutos para ler

O tema das fake news está na ordem do dia no Brasil e nos Estados Unidos não é de hoje. Ganhou especial relevância nos últimos meses porque ambos os países realizarão eleições neste ano. Mas não preocupa só por isso. Primeiro, em meio a uma emergência sanitária como a pandemia de covid-19 notícias falsas podem matar. Segundo, tanto o presidente Jair Bolsonaro como o presidente Donald Trump adotaram as fake news, as distorções da verdade factual e os ataques à imprensa profissional como estratégias de governo, não apenas táticas para vencer eleições.

Aqui no Brasil, recente operação da Polícia Federal (PF), autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), começou a descortinar uma organização criminosa que estaria a serviço do governo de Jair Bolsonaro para produzir e publicar mentiras, distorções, ofensas e ameaças contra pessoas e instituições republicanas por meio das redes sociais e aplicativos de comunicação como o WhatsApp. Nos Estados Unidos, vê-se um acalorado debate sobre a responsabilidade das chamadas Big Techs – Google, Twitter e Facebook, principalmente – de realizar a aferição da veracidade de tudo o que é publicado em suas plataformas. Há poucos dias, duas publicações do presidente Donald Trump no Twitter foram classificadas como duvidosas pela empresa. Quem as lia era convidado a visitar fontes confiáveis de informação que refutavam aquilo que o presidente americano havia escrito. Como reação, Trump assinou uma ordem executiva para acabar com o que chamou de “viés político” daquelas empresas, autorizando as agências federais a controlar o que é publicado nas redes sociais e a responsabilizar as empresas, o que é temerário. “Estamos aqui hoje para defender a liberdade de expressão de um de seus maiores perigos”, disse Trump ao assinar o decreto. A pretexto de defender a liberdade de expressão e acabar com o “viés político” nas redes sociais, o presidente americano pretende, na verdade, o exato oposto: controlar politicamente o conteúdo digital e, assim, cercear a liberdade.

Subjacente à discussão acerca da liberdade de expressão, que não por acaso também foi indevidamente invocada pelos bolsonaristas apanhados pela operação da PF, há uma questão que deve preocupar todos tanto quanto preocupa o resguardo da garantia constitucional: a neutralidade da rede. É isto o que, no fundo, está em jogo no debate corrente.

A neutralidade da rede é garantida no Brasil pela Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet, diploma legal elogiado internacionalmente –, que em seu inciso IV do artigo 3.º estabelece que a “preservação e garantia da neutralidade da rede” é um dos princípios que disciplinam a internet no País. Grosso modo, a garantia da neutralidade da rede equivale, no ambiente digital, às garantias individuais resguardadas pela Constituição, razão pela qual deve ser mantida intocada.

Dois projetos que tramitam no Congresso, em que pesem as boas intenções que os inspiraram, têm potencial para comprometer a neutralidade da rede. De autoria dos deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tábata Amaral (PDT-SP), na Câmara dos Deputados, e do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), no Senado, esses projetos visam à responsabilização das empresas de tecnologia pelo conteúdo que os usuários publicam nas redes sociais. É inegável que a disseminação de notícias falsas, injúrias e aleivosias é um mal para a vida pessoal dos indivíduos por elas afetados e um mal ainda maior para o viço democrático do País. No entanto, o melhor a fazer neste momento é combater as fake news por meio da identificação dos responsáveis por sua propagação, bem como daqueles que os financiam, levando-os a responder por seus crimes na Justiça. Exatamente como estão fazendo o STF e a Polícia Federal.

A eventual leniência das empresas de tecnologia para conter a disseminação de fake news e ofensas pode e deve ser amplamente discutida. O que é perigoso – e contraproducente – é simplificar uma questão que é complexa, simplesmente levando-as à Justiça. O resultado não será outro: empresas mais cautelosas e, portanto, menos propensas a deixar livre o debate que ocorre nas redes sociais que administram.

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