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A marcha da insensatez

por Ornan Serapião
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Bolsonaro tem o direito de pensar de acordo com a sua autodeterminação. Mas, para o bem do Brasil e de si próprio, ele precisa aprender o que deve ou não falar enquanto presidente do País, evitando desastres verbais como ocorreu em relação ao ex-militante Fernando Santa Cruz

LIÇÃO DE CASA Bolsonaro, como presidente, é obrigado a se portar conforme manda a Constituição: democracia e Estado de Direito (Crédito: REUTERS / Adriano Machado)

Antonio Carlos Prado e Caroline Oliveira

Jair Bolsonaro tem o direito de aparar o cabelo no estilo que melhor lhe aprouver, e se o fato de exibir-se em redes sociais durante o corte das madeixas lhe dá satisfação, também isso é direito seu – digamos, apenas, que não é lá de muito bom-tom. Mas vale, aqui, um alerta: atos como esse tendem a desaguar em um perigoso populismo, já visto em nossa República, que abre brecha para o autoritarismo, em nada ajudando a pacificar o País e fazê-lo andar para frente. O exibicionismo é problema dele e o vê nas redes sociais somente quem quiser. Da mesma forma, Bolsonaro pode falar o que lhe vier à cabeça ou à linguá dentro de sua casa, em um churrasco com amigos e parentes ou assistindo ao futebol de chinelos, camisa de clube e calça moletom. O que ele não pode fazer, em hipótese alguma, é seguir a matraquear, de forma irresponsável e em todas a direções, sobre assuntos que envolvem o Estado. Bolsonaro precisa aprender a separar o homem privado do homem legitimado e investido, pelo voto popular, do cargo de presidente do Brasil, uma vez que, como tal, ele representa a União, as Forças Armadas (porque é o seu comandante em chefe) e traduz-se, enfim, como o mais alto representante da Nação.

“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como o seu pai desapareceu no período militar, eu conto. Ele não vai querer ouvir a verdade” Jair Bolsonaro, presidente da República (Crédito:Divulgação)

De forma recorrente e dentro do comportamento padrão que montou a si, na semana passada Bolsonaro novamente não soube exercer a distinção entre o ser público e o ser íntimo, ferindo um dos mais elevados princípios constitucionais. Só que extrapolou, e fez isso ao comentar a morte de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, assassinado sob tortura aos vinte e seis anos, nos porões da ditadura militar. Ele era pai do atual presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz. A Constituição saiu-se machucada porque é cláusula pétrea a determinação de que o respeito à memória dos mortos integra a honradez à dignidade humana. Bolsonaro não gosta da OAB (direito dele pessoal) porque a entidade, cumprindo um papel legal, impediu que fosse interceptado o telefone do advogado de Adélio Bispo de Oliveira, que o esfaqueou durante a campanha presidencial. O presidente disparou: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto. Ele não vai querer ouvir a verdade” Qual verdade? Segundo Bolsonaro, Fernando foi morto pelos próprios companheiros da Ação Popular Marxista-Leninista, grupo guerrilheiro que integrava. Disse Bolsonaro que são fatos aos quais ele teve acesso na época. O certo, no entanto, é que a sua “verdade” é um grande engodo.

A própria Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, atestou a partir de documentos da PF, Aeronáutica e Marinha que Santa Cruz faleceu “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”, depois de ser preso no Rio de Janeiro em 22 de fevereiro de 1974. Bem, mas se os fatos estão contra Bolsonaro, pior para os fatos. Ou para quem os divulga. Na quarta-feira 30, o presidente determinou a troca de quatro dos sete integrantes do colegiado que o contrariou. Um dos novos indicados é Weslei Maretti, um empedernido defensor do coronel Brilhante Ustra, conforme revela sua rede social. A justificativa do mandatário do País veio em forma de mais um destempero verbal: “O motivo é que mudou o presidente. Agora é Jair Bolsonaro. De direita. Ponto final”.

“Lamentavelmente, temos um presidente que trata a perda de um pai como se fosse assunto corriqueiro, e debocha do assassinato de um jovem aos vinte e seis anos” Felipe Santa Cruz, presidente nacional da OAB (Crédito:Fernando Moraes/UOL/Folhapress)

As reações foram imediatas. Todo presidente da República tem obrigação, por força de lei, de contar o que sabe sobre o desaparecimento de qualquer pessoa – e, vale lembrar, foi Bolsonaro quem disse que soube dos acontecimentos envolvendo Santa Cruz à época da morte. “A sua atitude é inaceitável. Não posso silenciar. Sou filho de um deputado federal cassado pelo golpe de 1964 e vivi o exílio com meu pai”, diz o governador de São Paulo, João Doria. Eis uma importante questão: Bolsonaro se relacionava com integrantes dos porões? Essa é uma das indagações que ele terá de responder no STF, uma vez interpelado pela OAB. Felipe Santa Cruz atribuiu ao presidente traços de personalidade como “frivolidade”, “falta de empatia” e “crueldade”. FHC falou em “incontinência verbal”. “A característica do louco é essa: prejudicar a si mesmo”, reforçou o jurista Miguel Reale Júnior. Loucura, sim, foi Bolsonaro ter esquecido que também o ex-delegado Cláudio Guerra, atuante na repressão, relatou que Santa Cruz teve o corpo incinerado na Usina Cambahyba, em Campo dos Goytacazes. Ou seja: pela ótica de Bolsonaro, os próprios colegas de Armas estão desinformados.

NUNCA MAIS A ditadura deixou quatrocentos e trinta e quatro mortos e desaparecidos políticos: dizer que ela não existiu é um desplante (Crédito:Suamy Beydoun/Agif/Folhapress)

“O que o presidente fez é repulsivo. Mostra a crueldade e a falta completa de empatia. Ele brinca com sentimento de um filho que nunca conviveu com o pai” Míriam Leitão, jornalista torturada (Crédito:ALOISIO MAURICIO)

Diante da repercussão dessa e de outras tantas falas estapafúrdias do capitão reformado, os seus auxiliares mais próximos fizeram, na terça-feira 30, no Palácio do Planalto, uma reunião classificada como “de emergência”. Querem que Bolsonaro deixe de criar crises (aquilo que o ministro Marco Aurélio Mello nomeou de “aparelho de mordaça”), sobretudo nesse momento em que a economia começa a destravar. Os assessores têm razão. O presidente incorporou um padrão de comportamento abaixo da estatura que o cargo exige, acirrando a divisão e o radicalismo, sem notar que essa atitude o isola politicamente.

Ao usar a língua como chicote da alma, já chamou nordestinos de “paraíbas”, disse que não tinha fome no País, que só veganos se preocupam com o meio ambiente, fez troça com órgão genital de japonês, sugeriu que trabalho infantil fosse uma bobagem e – pasme – revelou pena da serpente que torturadores colocaram na sala escura em que esteve presa a jornalista Míriam Leitão, na época grávida.

Posturas como essas, para além da óbvia e lamentável desumanidade, apenas desagregam. Até políticos que ganharam votos surfando no bolsonarismo já começam a descer da prancha ao vislumbrarem ondas de autoritarismo. “Sou assim mesmo”, insistiu o mandatário ao dizer que não pretende mudar. Espera-se que pelo menos nesse ponto ele volte atrás e lembre-se que o sábio não diz tudo o que pensa, mas pensa em tudo o que diz. Faria bem para ele. E, mais importante ainda, faria bem para o Brasil.(istoé)

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