A crise envolvendo a decisão do comando do Carrefour global, de barrar a compra de carne do Mercosul na França, escalou rapidamente nas últimas horas. O setor frigorífico reagiu já na quinta-feira (21/11) à noite, iniciando o boicote contra a empresa, e ontem, o cancelamento dos envios de produtos foi sentido pela rede, apurou a reportagem.
“Caminhões da JBS que estavam no percurso para a entrega nas lojas ontem voltaram para trás”, diz uma fonte.
Nos bastidores, o Carrefour no Brasil — que foi pego de surpresa pelo comunicado global — tenta achar uma solução para a crise política e econômica gerada pela própria empresa, e não de descarta um pedido de desculpas do presidente da rede na França, dizem fontes.
Na quarta-feira, o CEO global do Carrefour, Alexandre Bompard, disse que os produtos sul-americanos não atendem às exigências e às normas francesas, e esse problema vinha afetando os produtores locais. Ainda disse que a rede na França não iria mais comercializar qualquer carne proveniente do Mercosul.
Toda essa crise gerada deve afetar as vendas do grupo Carrefour no Brasil já no início da próxima semana, tanto da varejista e quanto do Atacadão, se a rede não conseguir reverter o problema, apurou a reportagem com diferentes fontes. O Atacadão, maior empresa de atacarejo do país, é controlado pelo Carrefour.
Neste momento, monitoramento interno ainda não indica desabastecimento no país devido ao nível de produtos armazenados.
Há estoque de carnes in natura, das peças de alto giro (como fraldinha, patinho, paleta, contra filet) em torno de quatro dias na varejista e no atacarejo. Logo, o desabastecimento poderia ocorrer já a partir de segunda-feira (25/11). Os cálculos estão sendo feitos neste momento pela linha de frente do grupo.
Cancelamentos e pressões
Caminhões que seriam destinados para as lojas da empresa no país, vindos da JBS, tiveram o envio cancelado já ao longo da quinta-feira, dizem fontes a par do assunto. Mas entre o pedido interno de cancelamento e o não recebimento pela rede, leva algum tempo.
Por conta disso, o Grupo Carrefour não recebe nenhum lote de carne das diversas marcas da JBS desde a sexta-feira. E cerca de 80% da venda da empresa são de produtos do grupo.
A Globo Rural já havia informado ontem que frigoríficos brasileiros começaram a interromper o fornecimento para a varejista. Isso ocorreu após o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, afirmar que a declaração de Bompard afeta a soberania brasileira, desrespeita a produção local.
Segundo duas pessoas a par do tema, em reunião na quinta-feira, o presidente Lula pediu que Fávaro, ajudasse a cuidar desse problema, e, irritado, criticou duramente a postura do Carrefour, e do problema gerado para a imagem dos produtos brasileiros.
Fávaro teria ligado para Renato Costa, presidente da Friboi, com quem Fávaro tem uma boa relação, e criticado as declarações de Bompard.
Naquele momento, uma fonte diz que a JBS já tinha tomado a decisão de cancelar as entregas ao Carrefour. Surgiram informações no mercado de que a decisão foi tomada após a ligação do ministro, mas pessoas a par do tema na empresa negam essa versão.
De qualquer forma, Fávaro teria apoiado a interrupção no abastecimento pela empresa. Uma segunda fonte próxima à JBS afirma que esse contato entre ministro e Costa não chegou a acontecer.
Procurado, o ministro disse não negou ou afirmou ter ligado às empresas, apenas declarou que “ficou muito feliz” com a atitude dos frigoríficos.
“As empresas brasileiras que fornecem carne para lá [França] são as mesmas que fornecem aqui. Portanto, foi uma atitude bonita deles. Se eles não podem fornecer para o Carrefour francês, também não vão fornecer ao Carrefour brasileiro”, afirmou à reportagem.
“Parabenizei e apoiei a atitude deles. O presidente Lula soube da ação e gostou. Trata-se de soberania. Eles se acham a última bolacha do pacote”, continuou o ministro.
A JBS é da família Batista, cujos controladores têm um bom trânsito junto ao atual governo e os irmãos Wesley e Joesley Batista estiveram em comitivas presidenciais em visitas ao exterior.
Os lotes que seriam encaminhados pela JBS para o grupo Carrefour já estão sendo direcionados a outras varejstas e atacadistas, então é pouco provável que tenha uma perda para a JBS.
Surpresa na subsidiária
O grupo Carrefour no país foi pego de surpresa pela atitude de Bompard, apurou a reportagem, e soube pela imprensa da decisão do presidente do conselho de se posicionar sobre o tema publicamente.
Cerca de 5% das vendas do grupo vêm de carnes em geral (bovino, aves e suínos), diz uma segunda fonte, e a metade disso, cerca de 2,5%, refere-se só a venda de carne bovina pela empresa.
“Agora, eles têm que apagar incêndio no Brasil. Já houve vários contatos do comando aqui com a direção da rede na França para ver como desatar esse nó nas últimas horas”, disse uma terceira fonte.
Isso acabou abrindo uma crise política e diplomática, e com efeitos econômicos para a empresa no Brasil. A operação local responde por cerca de metade do lucro antes de juros, impostos, amortização de depreciação (ebitda) da rede no mundo
“A fala de Bompard é uma atitude pessoal e política dele. O agro tem força gigantesca na França e ele tomou uma decisão de se posicionar sem medir totalmente as consequências”, diz uma pessoa próxima à rede.
“Não é uma questão que deveria ser da rede, e ele colocou em xeque todo o mercado brasileiro e seus produtos”, diz essa pessoa. “Ele [Bompard] não protegeu o grupo e pôs em risco a operação no maior mercado dele. O resultado de Brasil gera dividendo para eles, o Brasil paga juros de financiamentos para a matriz, e ajuda na receita financeira deles. E o Brasil foi totalmente ignorado nessa decisão do Bompard de falar o que não deveria”.
Há uma discussão junto ao conselho de administração do grupo na França sobre como agir para resolver a questão nas próximas horas, apurou a reportagem.
Um caminho possível é um pedido de desculpas ao Brasil e aos produtores brasileiros pelo comando na rede na França, cujo presidente é um outro executivo do grupo.
Mas há informações circulando no ministério da Agricultura que o governo brasileiro só aceitaria um pedido de desculpas de Bompard.
“E o Bompard hoje não vai pedir desculpas, porque isso iria desgastá-lo junto aos produtores franceses”, disse. Bompard tem ótimas relações com o presidente francês Emmanuel Macron e já se posicionou sobre assuntos internos do país em outros momentos, numa forma de apoiar Macron.
Uma das opções levantadas internamente no Carrefour é recorrer a distribuidores de carne, comprando deles lotes emergenciais. Mas isso encarece a compra, e não há distribuidores com estoque livre para atender o grupo no momento, segundo levantamentos que a rede já fez.
Dezembro é data relevante nas vendas, quando ocorre celebrações de fim de ano, além da venda de Natal. Não há problemas em relação ao estoque de aves de Natal, mas as carnes para churrascos de fim de ano dependem dessa entrega ao longo do mês.
Perguntado sobre a crise envolvendo a empresa, e eventual risco de desabastecimento, o Carrefour enviou uma nota. Afirma que o Carrefour França informa que a medida anunciada na quarta-feira, 20/11, se aplica apenas às lojas na França. Em nenhum momento ela se refere à qualidade do produto do Mercosul, mas somente a uma demanda do setor agrícola francês, atualmente em um contexto de crise.
“Todos os outros países onde o Grupo Carrefour opera, incluindo Brasil e Argentina, continuam a operar sem qualquer alteração e podem continuar adquirindo carne do Mercosul. Nos outros países, onde há o modelo de franquia, também não há mudanças”.
Fonte: globorural.globo.com